por Luciana Romagnolli ::
Entrevista com o ator e diretor Enrique Diaz, ex-Cia dos Atores, que em trajetória solo apresenta no FIT-BH o espetáculo “Cine Monstro”, escrito por Daniel MacIvor.
Cine Monstro” é apresentado como o fecho de uma trilogia composta por “In on It” e “A Primeira Vista”. Essas peças já foram pensados como trilogia pelo autor Daniel MacIvor?
Na verdade, se tornou uma trilogia por nomeação no Brasil, porque aconteceram essas três montagens. Elas realmente se ligam entre si, como se ligariam a outras peças dele facilmente.
As duas primeiras são muito semelhantes na metalinguagem, a relação de um casal e a questão da morte. E “Cine Monstro”, como se relaciona?
“Cine Monstro” foi escrita antes, embora tenha muitos parentescos no trabalho dele com outras peças. Na minha interpretação, ele (MacIvor) escreveu “A Primeira Vista” como maneira de explorar um pouco mais “In on It”, trabalhando com personagens femininos. Tive a impressão de ser um exercício no mesmo diapasão, então essas duas se irmanam mais fortemente. Mas “Cine Monstro” também é muito próxima porque tem estrutura caleidoscópica, um revelar lento de uma estrutura geral, de arestas temporais, só que não são dois personagens e dois atores, não tem a questão do afeto que emana nas outras duas peças e redime as pessoas não fim de tudo. “Cine Monstro” é uma paisagem mais pesada.
O tema em comum não seria o amor, mas a morte?
O “Cine Monstro” é um pouco o avesso, o lado B. A morte está ali de outra maneira, não como as outras duas traçam na perspectiva de redenção. Nesse caso, a morte é mais terrível, não traz nada de bom. Quando fiz “Ensaio.Hamlet” e “Gaivota”, uma toda em preto outra em branco, eram também opostos mas muito próximos.
Então interessa a você como artista retomar um exercício, experimentar variações sobre um tema ou forma?
Acho bacana, sim. Não sei se isso para mim tem aparecido mais com a idade: não querer necessariamente mudar de direção muito rapidamente e frequentemente. Tanto na sequência “Ensaio.Hamlet” e “Gaivota” como nesse caso. Talvez seja uma mudança a partir da minha saída da companhia, fui focando em textos com menos atores e na obra de um cara só, e fui gostando muito do que aprendi com ele de exercício e da relação com o público. Nesse caso, também foi interessante porque pude me propor a fazer um exercício de ator. Como tinha essa convivência com textos dele, parecia um desafio não tão assustador.
Você falou da sua relação com o público, ela se alterou nos últimos anos?
Desde os primeiros trabalhos da companhia tinha um jugo bastante claro e presente de proximidade e distância. Procurar sempre comunicar mas ter consciência de onde quer provocar o ruído, o problema, a dificuldade, e não criar uma hegemonia da comunicação total. Esse bloco de peças (a trilogia) traz isso, trabalha com incompreensão e o aprendizado de perceber que a gente não sabe tudo sobre a gente e sobre o resto. São peças mais estruturadas, muito convidativas, mas têm esse elemento de vazio.
Você interpreta 13 personagens cujas histórias de algum modo convergem.
Tem um personagem central que está ali falando com aquele público e sempre volta, e várias linhas de história que vão se revelando relacionadas e convergem numa revelação.
A ideia de um ator interpretar todos os personagens já vinha do Daniel MacIvor. É uma opção dramatúrgica, ligada a uma noção de fragmentação do sujeito, ou só de encenação?
Tem as duas coisas. Daniel fez muitos monólogos solos que escreveu, tem uma tradição que resvala no stand-up. Nesse caso, tem também esse outro aspecto, um conceito de uma certa maneira também presente nas outras peças de a gente ser trespassado pelo outro. Esse personagem é trespassado pelos outros personagens que ele evoca. Tem um personagem que contaum filme que ele inventou e imagina a Uma Thurman e a Pamela Anderson, duas atrizes, vivendo a mesma pessoa. A gente é sempre, no mínimo, duas pessoas ao mesmo tempo.
A peça lida com o fascínio do mal. Como artista que recusa o moralismo, que postura ética implica a representação do mal?
Isso é uma coisa delicada. Estou muito na carona do que o Daniel escreve. Através de uma quebra de ponto de vista permanente, ele tem uma capacidade muito grande de não se deixar pegar. Tem essa coisa do travestismo, da mobilidade, de trânsito entre comédia e terror. A experiência do público é muito dinâmica. O mal ali é uma experiência e transita entre olhar personagens que, de certa maneira, perpetram o mal e entender como aquilo está funcionando no personagem. Ao mesmo tempo, fala do fascínio que o próprio público pode sentir. Lida com o público como alguém que saiu de casa para ver alguma coisa – exagerando – dar errado. Se não, não tem drama. Ele articula para que o público reconheça nele mesmo uma semente de querer ver problema. Até que ponto você gosta de ouvir a descrição de um cara sendo morto em pedacinhos? E o humor faz com que se vá lidando com o mal de uma maneira mais possível de ser percebido na gente mesmo. O mal passa desde um elemento bíblico até o mais cotidiano, conforme for seu olhar de espectador, pode vê-lo em vários níveis e detalhes.
Você relaciona esse tema com o contexto de violência no Brasil, como os linchamentos?
Eu alterno alguns cacos na peça e, às vezes, jogo isso no meio. Estreei no momento das manifestações, quase não teve na estreia. Agora, tem o linchamento. Ontem, um dos cacos foi o do garoto nego preso no poste. Tem lugar (na peça) em que isso faz sentido, sem se reduzir a isso.
Como o cinema está presente em “Cine Monstro”?
A peça é meio que um filme. Começa com um cara pedindo silêncio porque o filme está começando. Tem uma relação focal frente e fundo de se olhar para um ponto mais ou menos fixo onde fico quase todo tempo parado e da visão periférica das imagens (em vídeo). Essas imagens são às vezes mais abstratas, às vezes mais figurativas, como cenário ou sugestão para apoiar o texto. Ao mesmo tempo, o Daniel (MacIvor) fala do cinema como lugar desse escuro de entrada no inconsciente – e da imagem como imaginário. Eu vejo o cinema como o veículo desse século que passou, essas gerações todas são muito formadas pelo cinema, têm uma herança de filmes antigos e mais recentes. Isso toca muito em um conceito coletivo. Aí, quando ele (MacIvor) fala do terror e de uma espécie de origem do escuro relacionando ao momento antes de o filme começar, em que vem o eu, esse escuro está num lugar originário e aterrorizante. Tem um lugar de morte. Essa coisa onírica de deixar uma sequência de imagens vir e tocar em tudo que não pode. Minha ex-analista falava de um desrecalcamento total a respeito dessa peça, porque fala de assassinato do pai e relaciona esse escuro primordial da humanidade antes do eu com o escurinho do cinema.
Você está em “Moscou”, do Eduardo Coutinho, mas nunca dirigiu filmes. Qual a sua relação e do seu teatro com o cinema?
Fiz muitos filmes como ator, nunca dirigi, sou espectador. O cinema sempre foi uma coisa muito próxima do que eu fazia no teatro, não querendo emular, mas ensaiando. Na Cia. dos Atores, tinha uma gramática cinematográfica presente, numa ideia de passagem de foco, que a gente conscientizava durante o ensaio, no encaminhamento do olhar do público não totalizante, numa noção de travelling, na edição das cenas com cortes mais secos ou passagens mais suaves. Não digo nem que resultasse (cinematográfico), mas no processo era presente.
Como vê a atual cena carioca, com muitos novos grupo influenciados pela Cia. dos Atores, como é o caso dos artistas Felipe Rocha e Diogo Liberano?
Eu acho difícil falar de um panorama geral, porque não consigo acompanhar e, por outro lado, acho difícil falar de um lugar de influenciar essas pessoas todas. Mas é verdade que há bastante tempo a gente sabe, por declaração das pessoas, que o nosso trabalho formou muita gente nas proposições de cena ou na forma de organizar. A companhia foi, queira ou não, um grupo que conseguiu organizar trabalho coletivo com trabalhos individuais e não criava uma espécie de prisão para abdicar do resto todo. É um sentimento muito solidário e lúdico, que foi bastante forte para pessoas mais novas. Essas que você citou, só teria orgulho de dizer que foram influenciadas pela gente. E tem muitas outras pessoas trabalhando não na mesma linha, mas influenciadas pela continuidade que a gente teve e o trabalho de personalidade. Tem também toda a história do view point. Eu e Mariana (Lima, atriz) fomos as primeiras pessoas a trabalhar com view point no Brasil, uma técnica muito rica e produtiva, que vi bastante no Rio. É muito bom ver a coisa florescendo no tempo em vez de entristecendo.
Você continua com o Coletivo Improviso?
O coletivo é uma espécie de abstração. Existiu, fizemos um trabalho, anos depois outro e um terceiro. Ele meio que não existe direito, mas podemos fazer algum trabalho ainda.