Crítica a partir do trabalho Acima de Tudo do Teatro de Viés Ideológico com coordenação do professor Ernesto Valença (DEART/UFOP).
– por Clóvis Domingos –
Fotos de Gustavo Maia
Paralisar
Adormecer
Despertar!
Adormecer
Consumir
Acreditar!
Desencaixar.
Lembrar
Resistir
É preciso organizar o pessimismo – assim dizia Walter Benjamin.
Acima de tudo do Teatro de Viés Ideológico aborda nosso país em abismo e nossa penúria de reflexão, de ação, de reação. Um sol eclipsado pelo nevoeiro do fascismo em plena ascensão, e o mais triste, corroborado por uma parcela significativa da população. Um trabalho cênico vertiginoso que nos incomoda e desvela nossa solidão. A vida uberizada, a felicidade falseada e virtualizada, a servidão voluntária[1] nossa de cada dia como “colaboradores” desse universo em desencanto. Numa Poética do Desamparo, parece não oferecer nenhum tipo de redenção. O que fazer agora? Não há respostas.
Uma encenação contemporânea em tom cinza, através de existências performando entre cadeiras vazias e potentes microfones num “retrato em branco e preto a maltratar meu coração” (Chico Buarque). Permanecer sentados e passivamente à espera de um milagre? O trabalho tensiona os limites da representação enquanto arte, política e vida. Apresenta como dispositivos a microfonização, a repetição, a intertextualidade, o cruzamento de fatos históricos entre passado e presente (o fascismo hitleriano e o brasileiro atual)[2], as coreografias mecanizadas dos corpos obedientes, os aparelhos tecnológicos em suas “ordens de discurso” (Foucault), a figura midiática do palhaço misantropo e triste e seu circo de horrores. Há também as muitas vidas precarizadas, as cotidianas quedas, enfim parece um filme de faroeste caboclo no qual bandidos e mocinhos atuam sem convicção e são meros fantoches. Atrás da piada única escorre sangue de vidas que não valem à pena e não são passíveis de luto, segundo nos adverte Butler[3]. Os “tomates esmagados” têm nome, cor, classe social, gênero e endereço.
A iluminação difusa é forte como um sol à pino, mas a atmosfera é sombria, pura ausência de luz, eis um paradoxo: “Nesses tempos, a própria humanidade do homem perde sua vitalidade na medida em que ele – o homem – se abstém de pensar” nos lembra Hannah Arendt em Homens em Tempos Sombrios. É preciso organizar o pessimismo. É preciso erguer a cabeça e abandonar as telas. É preciso vislumbrar novas possibilidades.
Dentro do nevoeiro
Já no Prólogo que acontece na porta de entrada do espaço cênico, tem-se a ameaça e a impossibilidade de que o trabalho se apresente. Mas será mais uma fake- News, como tantas outras? Ironia ou realidade? Depois dentro da sala, as Massas Solitárias e as tentativas de ainda se encontrar sentidos nas palavras, nas coisas e nas ações. Vem então a parte A Verdade seja Dita, na qual o ator Bruno Marini nos interpela entre o que é ensaiado e o que é da própria vivência: por que estar ali, o que pode o gesto cênico? O que é do sujeito e o que é social? É possível separar tais instâncias? Quem está ou não, autorizado, a enfrentar e denunciar tais discussões?
Eis então que uma nova cena se apresenta: Zobo (numa alusão ao palhaço presidente Bozo), interpretado por Piu, em sua performance de uma consolidação da Pátria Armada Brasil e assim vemos os espectadores com seus risos constrangidos. Chega então a vez de As Razões de um taxista e temos as polarizações escancaradas e a vida coletiva exposta por um fio. Nunca juntos estivemos tão sozinhos. O isolamento e o individualismo sugam qualquer possibilidade de vida comunitária enquanto ato político.
Quando os atuantes se misturam à plateia e com seus aparelhos celulares enviam mensagens pelo whatsapp, numa tentativa de organizar a próxima cena, essa invasão tecnológica tão discreta e minúscula, aponta para sua eficácia em meio à nossa carne viva no tecido social, e nesta operação metalinguística, denuncia sua infiltração perversa em nossas possibilidades de comunicação mais humanizada, mais dialógica, mais corpo a corpo. Essa “direção” acontecendo tanto no teatro como em nossa realidade mesmo. E terá chegado o final do trabalho, com o jogo de alguém que ainda pensa e se manifesta diante de um outro que apenas determina e comanda: “morre”. É preciso organizar o pessimismo.
No encerramento do trabalho, o abandono dos atuantes da sala ao som de “O Juízo Final”, significaria, dessa forma, uma retirada de cena? “O sol há de brilhar mais uma vez”, entoado num tom melancólico parece prenunciar uma réstia de esperança por dias melhores. Mas não serão a esperança e o medo, dois vampiros e ladrões de nossas potencialidades num “circuito dos afetos (bio)políticos”, conforme salienta Safatle[4]?
O ensaio aberto de Acima de Tudo me trouxe sensações ambivalentes: desalento e vontade de lutar. Apresentando-se como um ensaio, no sentido de uma tentativa, experimentação de caminhos e propostas, algo então está vivo, incomoda, convoca, apesar de. É preciso organizar o pessimismo para ensaiarmos algum tipo de ação e colaboração coletiva. Nesse work-in-process, criado num processo pedagógico, temos uma contradição a ser assinalada: denuncia-se um certo pessimismo vigente, ainda que com a força da arte. Uma tarefa executada por um grupo de jovens atores.
Não, Benjamin, o pessimismo não é o protagonista do trabalho do Teatro de Viés Ideológico. “Acima de Tudo” nos reunimos, nos olhamos, compartilhamos, ainda há algo que pede invenção. “Morram, se deprimam, desistam” – eles dizem. “Não” – nós respondemos. Nós afirmamos o caos, o fracasso, a democracia em estado de crise. Nós assumimos a destruição e as possibilidades de reinvenção. Nós afirmamos a doença e a cura. Arte como possibilidade de transformação: “a sobrevivência dos vagalumes” (numa referência à bela obra de Georges Didi-Hubermann) em noites de desalento e escuridão.
O que podemos ensaiar daqui para frente?
Sim, Benjamin, me junto a você e endereço essas questões aos criadores Letícia, Ana de Verde, Júlia, Piu, Bruno e Ernesto: Como inventar novas formas de vida? Como ativar nossa imaginação política? Como não precisar mais de uma autoridade que nos guie e nos salve? Como nos amparar nos desamparando? Será possível isso? Também confesso que não sei. Como confiar em nossa maturidade psíquica, política e artística? Que outras imagens produzir? Como criar outras formas alternativas de vida à essa atual que tanto nos oprime?
O juízo (a)final estará de fato consumado?
Quem é que escreve a História?
Se não se trata de “o que fazer?”, mas “como fazer?”, o que podemos ensaiar daqui pra frente?
Com ou sem sol, a gente segue juntos, não é mesmo?
Quando o desamparo surge, ele pede uma reorientação, uma revisão de toda a realidade.
Só está de fato doente quem não cria.
Só está de fato rendido quem permanece sentado na cadeira.
É possível organizar o pessimismo, só não se pode ser vencido por ele.
Trabalho visto em 30 de junho de 2019 na Sala 12 do Departamento de Artes Cênicas da UFOP.
[1] La Boétie.
[2] Essa dimensão epicizante já foi por mim verificada no trabalho-manifesto Estopim do extinto Grupo Teatro do Tumulto, também coordenado pelo professor Ernesto Valença no Deart/UFOP.
[3] No livro Quadros de Guerra: quando uma vida é passível de luto?
[4] No livro Circuito dos afetos: Corpos Políticos.