– por Clóvis Domingos –
Crítica a partir das leituras Amor Fast-Food, de Amarildo Felix, e Pequeno Tratado Amoroso, de Anderson Feliciano, no Janela de Dramaturgia em 19 de setembro de 2018.
“De Ulisses, ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em que? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo. Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses a empurrava-a para o abismo – em breve ela teria que soltar a mão que empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre”.
Clarice Lispector. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres.
Começo esse ensaio crítico trazendo um trecho da obra de Lispector, pois sinto que de alguma forma há algo dela que perpassa os textos lidos na última noite no Janela de Dramaturgia. Amor Fast-Food de Amarildo Felix e Pequeno Tratado Amoroso de Anderson Feliciano são textos que contornam o horizonte masculino dos afetos homossexuais e cujas enunciações afirmam o desejo pela busca do encontro. Em ambos os textos o amor se configura como aprendizagem, experiência-limite, susto, medo, alegria e dor, alargamento existencial.
A leitura e a escuta dessas dramaturgias apontam para uma condição de fala que expressa não somente a ruptura com a clandestinidade e silenciamento impostos secularmente aos desejos homoeróticos, como também permitem a criação de novas formas de subjetivação das sexualidades. Nesses textos, a palavra poética vem carregada de modos enunciativos bem diversos, cujas formas borram e rasgam as estruturas mais convencionais de um certo tipo de dramaturgia.
No caso de Amor Fast-Food, nos diálogos entre os dois jovens que se encontram para realizar “algo muito íntimo” (será apenas uma relação sexual?), o texto opera através de fragmentações, repetições, falas cortadas e ágeis e alguns monólogos muito significativos que expõem seus personagens (como também os leitores e escutadores) a um jogo de procura de alguma coisa que excede o expressado, o decodificado, o até então planejado. São convites feitos em linguagens subterrâneas para se ultrapassar a dimensão discursiva mais ordinária e se experimentar a aventura de uma escuta para o mais além dos sentidos dados. Aqui relembro novamente Lispector: “ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”.
Em minha leitura de Amor Fast-Food, o aparente diálogo mais superficial ou de forte conotação apenas sexual dos dois jovens interlocutores, mais do que mostrar suas dificuldades em lidar com a intimidade proveniente das palavras e sentimentos que brotam, ou, com o necessário, parco e objetivo vocabulário discursivo de quem combina um encontro fortuito cujo contrato é exclusivamente carnal, a mim revela a traição daquilo que se foi buscar e não se encontra lá, a perda das certezas e lugares seguros, isto é: seus nervosismos e desembaraços frente ao desconhecido, seus jogos de dominação e disputa (bem presentes no universo masculino), o contato com o vazio, a angústia e a solidão, a necessidade de ser reconhecido como gente pelo outro. O encontro é uma ferida. Os personagens Fister e Fistee não têm nome, são sujeitos anônimos, e ainda que o tempo efêmero compartilhado entre eles venha a produzir significativas transformações, continuam a habitar seus mundos individuais como consumidores e consumidos no mercado fast-food das relações contemporâneas.
Na leitura do texto, realizada pelos atores Jonnatha Horta Fortes e Byron O’Neill, a existência de poucas pausas a mim sugeria a ansiedade dos personagens que encontravam, nas palavras que rasgavam o silêncio da sala, uma certa modalidade de fuga do constrangimento de se fazer contato com a fragilidade a que ambos estavam expostos. Nos raros monólogos, os personagens mais do que apenas poderem falar de si de forma marcadamente narcísica, podiam de fato, pela presença humana do outro, ampliar seus mundos para caberem mais possibilidades de existência. Ao serem escutados também podiam se escutar. O limite a ser rompido pela realização de uma prática sexual pouco comum como o fist-fucking acaba por criar conexões mais profundas quando a palavra e a presença real de um encontram espaço e ressonância na vida do outro:
Você é quente. Quieto, você me deixa ficar, o que tornas as coisas mais difíceis, pois quero continuar. Sinto medo, pois não seria o certo. O certo é a dor. Os gemidos de dor. A dominação. Nunca a entrega. Você é tão bonito por dentro. Você é quente. Tenho a melhor visão deste ângulo de dentro. Enxergo as coisas como elas deveriam ser. Tudo lá fora parece tão pequeno, menor, diante da vastidão que há dentro de você. Alcanço seu coração. Ele está em perfeito estado. Eu sei. Eu sei das coisas. Toco em seu coração. Acaricio ele. Ele gosta, parece que me reconhece e bate de uma forma diferente. Não era pra isso ter acontecido. Antes tivesse parado no mesmo lugar de sempre: no antebraço. Continuei. Avancei. Quem sabe assim agora eu possa dizer que conheci verdadeiramente alguém.
Se a narrativa do ato sexual com riqueza de detalhes chega a causar algum tipo de incômodo ao ativar nossa imaginação e provocar nosso senso moral, algo se quebra e extrapola a dimensão concreta da prática de se invadir o outro com os dedos, a mão, o braço e o cotovelo, pois “alcançar o coração” e poder tocá-lo e senti-lo só é possível pela força dos afetos. “Não era pra isso ter acontecido”, essa intimidade por demais indecente, essa claridade para um encontro combinado às escuras, essa visita que pode ferir mais do que a introdução de um membro em um corpo. “É a vida me rasgando para que caiba mais mundo”?
Essa pergunta também está presente em Pequeno Tratado Amoroso de Anderson Feliciano. E o dramaturgo e performer “destila uma nova suavidade” (Suely Rolnik) para também abordar seu convívio e sua aprendizagem com o amor. Feliciano relembra, fabula e reinventa um encontro amoroso através de onze exercícios, cada qual escrito numa chave discursiva diferente, transitando entre a poesia, a carta, o diário, o relato, o diálogo etc. Anderson-Lóri experimenta, no amor, a alegria e o susto de se sentir vivo:
A tal dor inerente a toda trajetória? Creio que ainda preciso amadurecer muito, mas decidi fazer dela trampolim para os saltos e juntos concluímos que será sem rede de proteção.
No agora de mim e nas bordas do eu o rio de águas revoltas caminha em direção ao mar do amanhã que serei.
Vamos nos permitir. Que os dias com sol seja regra. Como é lindo este estado. Que ele nos inunde. Que ele nos embale nas novas coreografias.
Das “palavras lançadas com leveza” num primeiro momento, acompanhamos no texto a intensidade de um amor que arde na alma e no corpo, e cuja a entrega se faz com promessas de futuro. “Quando você está dentro de mim, sou o encontro das águas do rio com o mar. Sinto-me anjo atravessado por sua espada”. O amor como completude e ao mesmo tempo como abertura de lugar. Na aprendizagem amorosa presente nesse texto, fragilidade parece ser sinônimo de força. Ser atravessado pela espada do encontro. Ser passivo e ser ativo. Não se proteger do com-tato com a diferença ainda que seja na semelhança que possa existir. Isso faz todo o sentido.
Outro ponto a ser ressaltado é que Feliciano está nomeado em sua dramaturgia e fala em primeira pessoa: “Eu, Anderson Feliciano. Quero a vida”. Uma escrita performática: a multiplicidade de gêneros impede qualquer classificação fechada. Uma experiência de fronteira: o eu, o outro, os espaços, os afetos, as alteridades do eu. A não adequação em via dupla: aos desejos normativos e aos corpos colonizados, como também a uma dramaturgia tecida com linha de uma só cor. Tudo fabula, desliza, colore e tropeça. Heitor dos Prazeres e Anderson Feliciano de muitas cores. Uma dramaturgia sem conflitos, mas com fluxos de desejo que transborda.
No exercício número sete, Anderson-Lóri afirma sua coragem e sua fé na possibilidade do amor como risco e aprendizagem:
A sensação era parecida. O novo por vir. Outra vez me lançarei.
É noite. As pessoas lá fora acenam as mãos.
São chegadas e partidas.
A viagem será longa.
Os sonhos e desejos também.
Até que o amor se esgota. E o que poderia não mais fazer sentido, pelo contrário, fez sentido porque foi vivido em plenitude. Fragilidade-força. O que não faz sentido é não acreditar que é possível fazer um caminho de mãos dadas com um outro. “Não faz o menor sentido se o coração não dispara” nos fala Feliciano. Anderson-Lóri ou Anderson-Ulisses?
Na leitura performada de Pequeno Tratado Amoroso lá estava o autor-performer acompanhado de outros artistas (Daniel Pitanga, Demétrio Alves, Stefanio Miranda, Jhonatta Vicente e Mário Rosa), instaurando tapetes sonoros e mais uma vez trazendo a suavidade como matéria-prima para nos falar de encontro, masculinidades, curas, aprendizagens e rasgos de vida. Corpos negros e políticos fazendo da suavidade um antídoto contra tanta virilidade que só produz violência e isolamento.
Ao falar de um olhar obsceno, Lacan afirma que não se trata de ver melhor, mas sim de se ver além da cena. Em Amor Fast-Food e Pequeno Tratado Amoroso a maior obscenidade é a coragem do amor que ansiamos viver e do qual vivemos fugindo, pois temos utilizado medo, sexo e poder como formas de indiferença, não sabendo que tudo isso é “angústia disfarçada” (Lispector). “Todas as pessoas deveriam deixar seus corpos serem molhados pela chuva algum dia”, finaliza Anderson em seu texto.