A partir de hoje, publicaremos aqui alguns dos textos produzidos pelos participantes do Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral pelo projeto [Circuito Aberto!] Diálogos Cênicos. No primeiro encontro, o tema foi livre. Leia a crítica de Bremmer Guimarães:
Um leão líquido e cada vez mais tátil
Por Bremmer Guimarães
O grupo espanca! completou dez anos em 2014. No repertório da companhia, são seis espetáculos, todos apresentados neste ano para comemorar essa uma década de vida. Por Elise, criação que deu origem ao coletivo, talvez seja até hoje sua montagem mais marcante, afinal foi o espetáculo que projetou o espanca! nacionalmente. No entanto, é interessante destacar outras duas peças do grupo, e também as duas últimas: O Líquido Tátil e Dente de Leão. Mais do que isso, é importante se questionar: a que público elas se direcionam?
O Líquido Tátil foi montada em 2012, a partir do texto do diretor e dramaturgo Daniel Veronese. O próprio argentino dirigiu os atores de Belo Horizonte, que viajaram para Buenos Aires, onde fizeram residência de algumas semanas. Era a primeira vez que Grace Passô não participava da direção e dramaturgia de um espetáculo da companhia, embora estivesse presente como atriz. Um ano depois desse processo, Grace deixaria o espanca!, mas isto ainda não importava aqui.
Num primeiro momento, há de se pensar que O Líquido Tátil é uma montagem que dialoga mais com profissionais das artes cênicas e com um público fiel de teatro. A própria história da peça propõe uma reflexão sobre o fazer teatral e o cinema, e referências a pensadores e correntes dessas duas áreas, como Tchekhov, Shakespeare e o impressionismo na sétima arte, não faltam à dramaturgia. Esse excesso de citações até pode prejudicar o entendimento do texto por um espectador que tenha uma menor familiaridade com a linguagem artística, mas, o que está em cena, vai além: o teatro não é colocado num pedestal, como expressão das elites ou voltada para poucos. Esse preconceito é, ao contrário, desconstruído.
O que é teatro? O que há de magia no teatro? O que há de real se, com um simples chute, o cenário pode ser destruído? O que há de glamour se o figurino utilizado pelos personagens – todos eles atores e criadores supostamente renomados – parece ter saído de uma loja barata? O Líquido Tátil causa estranhamento. Sua artesania precária foge ao realismo, caminhando em direção ao absurdo. Esse incômodo é fundamental dentro das diversas conexões que o espectador pode estabelecer assistindo à peça. Seja na falta de clareza, no nonsense ou na ironia.
Já Dente de Leão, novo espetáculo da companhia, estreado em 2014, parece trilhar um caminho diferente: o de causar afeto, em vez de fazer estranhar. A montagem marca nova fase no grupo: a maturidade, a saída de Grace, a chegada de novos membros. Dez anos e uma pausa para a reflexão. O que fizemos até aqui? O que queremos continuar fazendo? Dente de Leão é como um renascimento, como um embrião dos dez anos que estão por vir.
Os personagens, ao contrário de em O Líquido Tátil, estão presos em estereótipos, mas qual será o objetivo dessa escolha? Se, por um lado, parte da classe artística e dos espectadores mais assíduos podem entender o trabalho como superficial ao apresentar estudantes como heróis e professores como vilões, um novo público e novas conexões podem surgir. Qual é a importância desse maniqueísmo dos personagens, que é tão recorrente na literatura, no cinema e nas telenovelas? No caso da peça, ele funciona como um código lógico, uma vez que o roteiro reforça o ideal de que a juventude é esperança de um futuro melhor para o país e aponta a educação como um dos setores críticos da nossa sociedade. No entanto, essa crise não se resume à deficiência dos profissionais, envolvendo vários âmbitos políticos.
A questão colocada pelo espanca! não é a de errar ou acertar, mas a de tentar dialogar com diversos e diversificados espectadores sem perder a essência poética da arte. O artista não deve limitar, nem modificar sua criação, mas precisa ter consciência da constante tensão entre sua subjetividade e a busca por uma forma de se relacionar com a plateia, criando relações de comunicação e afeto, por exemplo. A julgar pela oposição tão convergente entre seus dois últimos trabalhos, essa pesquisa do grupo ainda tem um longo caminho de aprendizado para percorrer.