Na sequência da publicação de alguns dos textos produzidos pelos participantes do Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral pelo projeto Diálogos Cênicos, leia a crítica de Jéssica Ribas sobre Trans, de Guilherme Morais:
Por Jéssica Ribas
“Trans”,
Transforma um olhar acostumado com o óbvio.
Transmite um discurso que rompe com definições.
Transcende o ideal de gênero estabelecido pelos corpos.
Transpõe as amarras a que se prendem os rótulos.
Uma espectadora é convidada a apresentar a cena reproduzindo tudo o que é dito num vídeo que só ela escuta (Nós estamos constantemente reproduzindo o que vemos e ouvimos, muitas vezes sem filtro). Esse é o start para que o público faça parte do que está por vir.
Dois corpos no espaço, duas figuras vestidas de noiva. Travestidas se confundem (nos confundem). Desfazem das roupas, ainda confundem. As palavras com prefixo trans são lidas e arremessadas, em sintonia, com precisão, meticulosamente trabalhadas, dois corpos em um, desconstroem o clima frouxo e esboçado anterior.
A energia se eleva, uma nova cena se estabelece. Um corpo no chão é modelado e remodelado em excesso, a carne apanha e alcança a exaustão. Fica só. (É feminino?) Muitos pelos aparentes (falsos?). Na roupa de baixo um volume (É homem?).
No novo quadro, o corpo ainda no chão faz poses para o público, tenta se adequar às posições pré-concebidas para uma mulher (É mulher). Assim está adequado? E assim? Nunca estará. A não desistência da procura pela posição “perfeita” novamente leva à exaustão (A cobrança nunca cessa).
A figura de fora retorna. Está repleta de roupas sobrepostas. Quem eu sou? O jogo começa. Enquanto a outra tenta adivinhar, gestos vão sendo feitos, uma mimese de estereótipos se estabelece. A cada acerto, as peças de roupas vão sendo retiradas. É “axezeiro”, é madame, é “tilelê”. O improviso é livre; o riso e a participação do público, que às vezes colabora com os rótulos (reproduzindo-os inconscientemente), também. O performer se despe de tudo até que só reste uma blusa branca, longa, idêntica à que a mulher (?), que já estava em cena, usa. Dessa vez não há definições, “agora está igual a mim”.
Colocam-se de costas ao fundo do palco. Levantam as blusas, descem as roupas de baixo. “Qual a diferença?” Dois corpos, roupas iguais, tipos físicos aproximados. No microfone a resposta: “O cu, porque cada um tem o seu”.
O volume da roupa de baixo é retirado, vira bolas de futebol. Cada jogador tem a sua (a partida é de cada um, não há competições). Um áudio narra o jogo de forma chula, com palavrões (coisa de macho). Jogam por um tempo, o cunho machista novamente fica exaustivo.
Homem e mulher retornam às origens, assumem oposição quando a representação de Adão e Eva vem à tona. Um aparato os une. Adão carrega Eva pendurada pelo espaço até que ela nasce dele numa imagem que remete à mulher parindo.
Do início ao fim, do fim ao início, do meio ao fim, do meio ao início e ao fim, do início e ao fim e ao meio… “Trans”, com sua despretensão pretensiosa, subverte os sentidos em sua manifestação performativa do gênero não fixo.