Na sequência da publicação de alguns dos textos produzidos pelos participantes do Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral pelo projeto [Circuito Aberto!] Diálogos Cênicos, leia a crítica de Felipe Cordeiro sobre “Derrame”, de Guilherme Morais, escrita no terceiro encontro.
DERRAME
Por Felipe Cordeiro
“Derrame”, do verbo derramar. Encher algo até que transborde, que não caiba em seus limites. Ou, então, o acidente que é para o cérebro o que o infarto é para o coração: morte ou perda de tecido.
Na cena curta (ou performance) dirigida por Guilherme Morais, vários tipos se organizam no espaço: um homem vestido com roupas e acessórios de Frida Kahlo, uma Branca de Neve subversiva de cabelos cor-de-rosa, um homem com uma máscara publicitária de uma marca de comida chinesa; e tantos outros corpos…
No chão estão várias embalagens que possuem formas e tamanhos diversos: caixa de suco, de refrigerante, tubo de ensaio… Os recipientes estão preenchidos com um pouco de água – a quantidade é menor do que a de apresentações anteriores. Talvez para não agredir o piso do casarão histórico da Praça da Liberdade, talvez como posicionamento ético frente às crises hídricas que o Brasil enfrenta, talvez por ambas essas questões ou por nenhuma delas.
Aos poucos, os intérpretes, que estão posicionados cada um ao lado de dois frascos, vão tomando esses objetos, um em cada mão, no ritmo da trilha sonora – uma música instrumental. As embalagens são erguidas e inclinadas até que derramem e molhem esses corpos diversos, que, ao mesmo tempo em que são símbolos de padrões institucionalizados pela sociedade ocidental, também deslocam e transgridem essas imagens já saturadas pelas mídias, levando seu receptor “a uma região de indeterminação que só a arte pode criar e que, definitivamente, se conecta com a resistência aos modelos impostos por uma sociedade estratificada[1]”.
A melancolia do desejo pelo consumo do que preenche os vasilhames só dá lugar ao prazer, à brincadeira e à leveza quando o líquido derrama sobre aqueles corpos, que, a partir de então, abandonam os tecidos, dançam em torno de si e dos outros, escorregam, deslizam, caem, correm, levantam e caem outra vez. Todos riem, se divertem; deitam e rolam sobre a água que é fruto da junção do que antes foi desejado e transbordou, inundou cada uma daquelas personalidades habitadas por referências ao pop, ao kitsch e à antropofagia, que é o resultado de toda essa mistura do Brasil com a China, o México e o Egito.
E se derramarmos tudo que compõe o que nos forma e dá forma? Como isso afeta a nós e a quem nos rodeia? Quem define a nossa forma? Quanto e o quê cabe nessa forma? E se o outro escorrega no que eu derramo? Será que o que derramamos fará falta a outro? É performance ou é teatro? É dança contemporânea? O que existe dentro do contemporâneo? E se derramarmos?
“Derrame” é sobretudo uma imagem que passa pelo espectador na velocidade de um cometa. Uns enxergam uma estrela cadente, outros meteoro. É improdutivo? É lúdico? Eu posso derramar também? Quem vai estancar ou entancar o que escorre?
Derrama-te do que te contém.
[1] ROJO, Sara. Crítica latino-americana de teatro e cinema: imagens. In: RAVETTI, Graciela; ROJO, Grínor; ROJO, Sara. Por uma crítica política da literatura: três perspectivas latino-americanas. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.