— por Julia Guimarães —
Crítica a partir do 12º Festival de Teatro da Amazônia, realizado entre 22 e 28 de março, em Manaus.
Criado em 1896, na fase áurea do Ciclo da Borracha, o Teatro Amazonas segue ainda hoje como um dos mais imponentes símbolos de Manaus. Com arquitetura que remete aos clássicos teatros de ópera italianos, traz a particularidade de ser adornado por colunas com máscaras gregas em homenagem a dramaturgos e compositores clássicos. Entre eles, Shakespeare, Molière, Mozart, Goethe, além de outros tantos.
Abro este texto com a observação acima para tentar pensar na experiência de ter acompanhado o 12º Festival de Teatro da Amazônia, em Manaus, entre os dias 22 a 28 de março, em diálogo com o espaço que abrigou sua programação. Ao longo desses dias, passaram pelo Teatro Amazonas grupos do Ceará, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Rondônia e do próprio Estado.
A presença desses nomes nas laterais da plateia parece servir como uma lembrança permanente a respeito das estruturas invisíveis que estabelecem o fio entre tradição e atualidade no teatro. Mais do que isso: da fricção entre o que assistíamos no palco e a presença de um dispositivo cênico da imponência do Teatro Amazonas, surgiam reflexões sobre em que medida o vínculo do teatro com seu próprio passado reverberava nas criações apresentadas no festival.
Dito de outro modo, as perguntas que surgem a partir da experiência cênico-espacial vivenciada no Festival de Teatro da Amazônia seriam as seguintes: Qual a relação entre a tradição teatral e as questões que apareceram nos espetáculos da programação? Quais seriam as narrativas e representações presentes no imaginário teatral que constantemente retornam aos palcos? E quais as dimensões de repetição e ruptura que os trabalhos apresentados projetam no diálogo com essa tradição?
Faço essas perguntas em um momento político no qual parece indispensável dar foco às questões discursivas do teatro e manter um diálogo ativo com a realidade que o circunda. No contexto do Festival da Amazônia, a proposta seria pensar em problematizações/eixos temáticos comuns a diversas criações e na maneira como se conectam a determinadas tradições.
Eixos temáticos. A considerar a programação de espetáculos adultos e infantis, seria possível verificar alguns tópicos que perpassaram o festival. Numa vertente, estaria o diálogo com contos populares europeus, que remete ao imaginário histórico do continente. É o caso de trabalhos como “Acorda, Amor” (Cia. Quatro Manos/RJ), “Fadas” (Essa É Cia /SC) e “O Mistério do Sapato Desaparecido” (Teatro por um Triz/SP).
Embora nos três exemplos o foco pareça ser a técnica explorada e a pesquisa de linguagem – sobre campos como a dramaturgia do ator e o teatro de objetos – o fato de serem apresentados sob a ‘moldura’ do Teatro Amazonas colabora para ressaltar a potência que esse imaginário colonial segue exercendo sobre as representações culturais brasileiras.
Em outro bloco, estaria a representação do universo de artistas populares e de seus ofícios. De forma aprofundada ou pontual, essa discussão aparece nos espetáculos “Balada de um Palhaço” (Coletivo Dinossauro de Teatro/AM), “O Menino por Detrás das Nuvens” (Arte & Fato/AM) e “O Dragão de Macaparana” (Soufflê de Bodó Company/AM). Enquanto o primeiro, baseado em peça de Plínio Marcos, problematiza a tradição ao apresentar um palhaço de circo que se cansou de repetir as mesmas gags, os dois últimos acenam para a reprodução de uma imagem idealizada das trupes e artistas mambembes. Nas criações, elas são vistas como vetores de liberdade, aventura e coletividade, em oposição ao tédio e às normatizações sociais das cidades por onde passam.
Também recorrente no festival foram as representações da mulher e dos papéis destinados ao gênero feminino, que será foco, mais adiante, de uma análise mais detalhada, em diálogo com questões propostas anteriormente sobre o fio atualidade/tradição.
Em uma perspectiva crítica, estariam dois trabalhos que partem de relatos e documentos para construir sua dramaturgia: “Mamá!” (Zula Cia. de Teatro/MG) – que dialoga com depoimento de mulheres sobre a experiência da maternidade – e “As Mulheres do Aluá” (O Imaginário/RO), que trabalhou com processos criminais das primeiras décadas do século XX, numa pesquisa histórica sobre a situação das mulheres no contexto da construção da Estrada de Ferro Madeira–Mamoré na região.
Em outro contexto, aparecem espetáculos que levaram à cena obras europeias constantemente montadas no Brasil. É o caso de “Fando e Lis”, escrita pelo espanhol Fernando Arrabal e montada pelo Grupo Ateliê 23, de Manaus; e “Otelo Solo”, adaptação do clássico de Shakespeare, em versão de monólogo interpretada pelo ator manauara Arnoldo Chaves. Embora, em ambas, o cerne dramatúrgico não seja exatamente a representação da mulher, chama atenção o fato de que, nos dois espetáculos, a violência atrelada a questões passionais seja o mote para a sequência das ações trabalhadas em cena.
Por sua vez, no espetáculo de rua “Dragão de Macaparana” (Soufflê de Bodó Company/AM), a representação do feminino é destacada pela presença da personagem Tetinha, que hibridiza diferentes referências e cria estranhamento sobre os papéis geralmente destinados à mulher. Representada por um ator, sua construção flerta tanto com os valores patriarcais geralmente vistos na Literatura de Cordel – de onde parte a dramaturgia do trabalho – como também com a tradição de personagens populares grotescos e dos tipos enamorados da Comedia Dell’Arte italiana.
“Mamá!”. No que se refere à montagem “Mamá!”, as representações e narrativas tradicionais sobre o “papel de mãe” são colocadas em xeque, numa perspectiva de ruptura. Através de histórias verídicas, uma série de lugares-comuns vinculados à idealização da maternidade – como o mito do amor ‘incondicional’ pelos filhos, ou o da gravidez como ápice da realização feminina – são desconstruídos para dar ênfase a outro tipo de representação, na qual a experiência de ser mãe surge acompanhada de incertezas e situações paradoxais.
Apresentados numa narrativa fragmentada, com dramaturgia de Assis Benevenuto, os depoimentos servem para dar visibilidade às contradições desse universo. Enquanto um dos relatos expõe a constatação, nem sempre agradável, de que ser mãe significa criar um vínculo eterno de dependência e cuidado com o filho, outro depoimento explora o fato de que muitas mulheres tornam-se mães sem nunca terem questionado se esse é realmente um desejo.
Na encenação da diretora Grace Passô, blocos de argila são explorados pelas atrizes e sugerem diferentes camadas de leituras em torno dessas relações. É também com a argila que se constrói a imagem-síntese do espetáculo – o ato de lançá-la repetidas vezes contra a parede, o que pode aproximar-se da ambiguidade afetiva comum à experiência materna. Na versão apresentada no Teatro Amazonas, parte do público ficou nas laterais do palco, com quem as atrizes/personagens estabeleciam interlocuções pontuais.
Ao contrário do trabalho anterior do grupo, “As Rosas no Jardim de Zula”, a opção aqui é menos a exposição direta dos relatos que originam os fragmentos narrativos e mais sua recriação poética. Em comparação ao trabalho anterior, parece que os depoimentos, ao perderem certo contorno documental, se distanciam da aposta na singularidade das “personagens” e do cotidiano dos seus contextos socioculturais, para explorar uma representação mais atemporal, por vezes mítica, das mães em cena.
Essa dimensão se revela tanto pelo gestual simbólico das atrizes Andréia Quaresma e Talita Braga e sua relação com os objetos de cena, como também pelo recurso da repetição na encenação/dramaturgia, ou ainda por certo viés trágico que perpassa algumas das personagens apresentadas. A proposta de lidar com água e argila como matérias que molham e sujam o corpo – ou ainda com trapos – também faz lembrar certa visceralidade, que, por sua vez, remete à representação do feminino como emblema de força e de dor. Imaginário este que vincula algumas dessas personagens a outras tantas da tradição teatral.
A construção fragmentada colabora, por sua vez, para pincelar problematizações de naturezas distintas sobre a maternidade. Além dos questionamentos e subversões já citados, os depoimentos contemplam ainda o ponto de vista dos filhos. Nesses textos, o que se revela é um retrato das mães trabalhado sob a relação eu-outro.
Em frases como “primeiro a mulher, depois a mãe” ou “fui mãe da minha mãe”, ambas vindas de relatos autobiográficos das atrizes, transparecem os diversos papéis que a figura materna pode assumir aos olhos de suas filhas e filhos. E é, talvez, quando as atrizes apostam mais na sobriedade da atuação e no poder de convenção da narrativa, e menos na lógica mimética, que mais se aproximam da proposta de subverter os lugares tradicionais da mãe como entidade idealizada.
“As Mulheres de Aluá”. A sobriedade na interpretação, aliada a certa hibridez dos lugares de fala, é também elemento que confere complexidade a algumas figuras femininas do espetáculo “As Mulheres de Aluá”, da companhia O Imaginário. Criado a partir de processos criminais das primeiras décadas do século XX [1], o trabalho aborda diversos tipos de violências sofridas por mulheres do período, na cidade de Porto Velho.
Na cena que abre o espetáculo, dirigido por Chicão Santos, surgem personagens confinadas em pequenas jaulas, de onde saem para relatar suas situações. Apresentam, em tom de denúncia, histórias invisibilizadas pela opressão de gênero, como o relato de abuso sexual vivido por uma delas, realizado por um “primo, com idade de tio, quase um pai”. Ou a narrativa da única personagem na trama que esboça resistência à opressão da época e, por isso, é taxada de feiticeira, além de enfrentar a solidão que surge em consequência da sua postura.
Certa dimensão fisiológica e trágica do corpo feminino, que por vezes se antevê em “Mamá!”, aqui surge como recorrente construção imagética, correlata às situações de dor e violência. Sangue, suor, saliva, cicatrizes de um “corpo-mapa”, são substâncias que surgem na narrativa das personagens e parecem operar como sintoma material e simbólico dos abusos sofridos.
O tratamento visceral dita também o tom do discurso das mulheres em relação aos seus opressores, em relatos que narram o desejo de travar vinganças físicas cruéis contra eles. Essa aposta discursiva – atrelada a momentos em que o sentimento de ira parece transferir-se para a própria rivalidade das mulheres entre si – acaba por reforçar, em certa medida, o “pensamento-homem” que o espetáculo busca criticar.
Por outro lado, quando propõe, na encenação, um jogo entre a personagem e a própria intérprete – como na cena em que uma delas se dirige diretamente ao público para afirmar-se negra e denunciar que “negro nesta terra não tem valor” – a ficção se presentifica ao espectador no corpo da atriz, se descola do caráter histórico dos documentos de época e sublinha a atualidade da denúncia.
Mas é também certa “fidelidade” ao viés histórico – em um relato desesperançoso quanto às possibilidades de mudança diante da persistente violência de gênero – que dá ao espetáculo um desfecho com brechas para uma leitura resignada da resistência feminina. Após uma partilha catártica das vivências e também da bebida que dá nome ao espetáculo – o Aluá – as personagens voltam para suas jaulas e, consequentemente, ao mesmo lugar de onde saíram.
Em um momento em que movimentos negros e feministas muitas vezes se recusam a serem representados de acordo com o imaginário tradicional de seus papéis, há de se perguntar em que medida o desfecho constrói sentidos de denúncia – pela exposição do realismo histórico da situação retratada – e em que medida acaba por reiterar a tradição de subalternidade dessas categorias.
Diálogos possíveis. É, sobretudo, ao deslocar essa questão para outros espetáculos do festival que fica nítida a recorrência da ação violenta sobre o corpo das personagens femininas, ainda que acompanhada de uma postura sutil ou evidentemente crítica.
Em “Otelo Solo”, a adaptação de Zémaria Pinto transpõe a peça original para o formato do monólogo. Nessa escolha, a ação dramática centra-se no conflito do protagonista diante das suspeitas de traição de Desdêmona. Questões como a guerra e o racismo surgem secundárias na versão. A ênfase recai, sobretudo, na agressividade consequente de um ciúme “irrefreável”.
Ao enfatizar esse aspecto, a montagem dirigida por Nereide Santiago deixa em aberto uma pergunta: se Otelo arrepende-se de seu crime somente ao descobrir que a companheira havia sido fiel, que margem de crítica o espetáculo propõe sobre a suposição de que o adultério, por sua vez, justifique um assassinato? Ainda que o raciocínio possa parecer simplista, não se apaga nas entrelinhas da encenação – assim como a ideia da esposa como propriedade, também reforçada pelo fato de Desdêmona ser representada por um objeto na versão de “Otelo Solo”.
Em debate após o espetáculo, o ator Arnoldo Chaves ressaltou o desejo de abordar, com o trabalho, a violência contra a mulher. Disse também que a adaptação original trazia um acento crítico nesse sentido, ao propor o uso de vídeos com notícias de crimes passionais, que acabaram não entrando na versão final. Talvez possa ser essa uma maneira de reduzir distâncias entre intenção e efeito, a fim de evitar ambiguidades no diálogo com a tradição.
Já em “Fando e Lis”, um dos textos mais conhecidos de Fernando Arrabal, montado pelo grupo Ateliê 23 (AM), a representação feminina adquire outras camadas de complexidade, já que o casal que dá nome à peça é construído a partir de referências diversas. Em cena, surgem tanto paradoxos psicanalíticos, vazios de linguagem próprios ao Teatro do Absurdo, como também um tratamento infantilizado das personagens, comum às obras de Arrabal.
Na versão dirigida por Taciano Soares, a encenação privilegia a fisicalidade dos corpos. A paralítica Lis só se movimenta no plano baixo, sem dobrar as pernas. O deslocamento em bloco, com a parte inferior do corpo imobilizada, confere certo caráter de resistência a Lis, que pode servir de metáfora à maneira como ela, ao longo do espetáculo, desafia a relação de dependência com Fando.
Embora novamente aqui, assim como em “Otelo Solo”, a personagem seja agredida e termine assassinada, sua reação subverte o lugar-comum da tradição do papel feminino em pelo menos duas vertentes: ao converter o sofrimento físico em prazer; ao jogar com o papel de vítima para inverter as relações de poder com a figura masculina.
Por outro lado, as diversas camadas de linguagem que levam a personagem para outras leituras coexistem com a reiteração de certas representações do universo feminino, especialmente no plano da ação. O tratamento objetual, as tantas torturas e agressões físicas sofridas por Lis, os abusos que partem do trio de personagens masculinos na montagem do Ateliê 23 ou a maneira como Fando idealiza sua “noiva” parecem parte de uma perspectiva que, se por um lado conduz a figura feminina a outras atitudes, por outro, continua a reencenar a violência histórica sobre o corpo da mulher, assim como ocorre em “As Mulheres de Aluá” e “Otelo Solo”.
A recorrência desse gesto em diferentes obras cênicas do festival leva a um questionamento para além dos contextos apresentados: que outras representações do feminino deixam de existir para que essas persistam? Quais outras ações e gestos podem surgir nas encenações, que não trabalhem a construção do corpo feminino sob o viés da violência, do objeto ou da sedução/pecado? De que maneira o inconsciente da tradição teatral colabora para reiterar tais representações? Ou: como elaborar cenicamente uma crítica à violência de gênero sem necessariamente reproduzí-la na ação/narrativa?
Como foi dito antes, tais questões surgem em um contexto político de crise, no qual, por isso mesmo, existe um forte esforço de problematizar e reinventar as representações, em seus mais diversos âmbitos. E há urgência nisso. Nesse sentido, atentar-se ao diálogo com a tradição – como o dispositivo arquitetônico do Teatro Amazonas parece fazer-nos sempre lembrar – é também perceber as representações que seguem invisibilizadas ou sem espaço nessa relação. Ou, ainda, compreender o vínculo entre inconsciente e repetição no que se refere aos imaginários da criação teatral presentes em diferentes épocas e localidades. E, talvez, uma maneira de projetar caminhos para que o teatro possa afetar-se, cada vez mais, por essa urgência da atualidade.
[1] A partir de pesquisa da historiadora Nilza Menezes.
(Julia Guimarães participou como mediadora dos debates do 12° Festival de Teatro da Amazônia, a convite da organização do evento).
Belíssimo trabalho, Júlia. Parabéns pela lucidez e percepção. A cena agradece.