Na sequência da publicação de alguns dos textos produzidos pelos participantes do Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral pelo projeto [Circuito Aberto!] Diálogos Cênicos, no segundo encontro com tema livre, leia a crítica de Guilherme Diniz:
A Hora do (ou da) Estrela
Por Guilherme Diniz
Se nos fosse dado a oportunidade de conhecer meticulosamente as histórias e traumas de todas as personas urbanas e marginais que povoam as ruas de qualquer cidade, certamente ficaríamos atônitos com as odisseias diárias de cada um deles; pois entre o mendigo e a meretriz há muito mais do que sonha a nossa vã filosofia. Quando esta mesma filosofia não verticaliza tais indivíduos, as definições precipitadas levantam-se de envolto às calúnias.
Luiz Estrela ou Os Escombros da Babilônia, espetáculo de formatura de graduação em Teatro (UFMG) de Manu Pessoa, carrega parte dessa problemática e, assim como em A Hora da Estrela, último romance de Clarice Lispector, a peça versa sobre a vida e os sonhos de um alguém que enfrenta os demônios da cidade grande. Tanto em Macabéa quanto em Luiz Estrela, encontramos as crises internas que associam a ambos pertinentes questões de ordem social e filosófica. As parecenças nominais das duas obras, além de oferecer trocadilho para a crítica, pode nos conduzir a reflexões aprofundadas e consoantes a respeito de dois personagens que contêm certas condições similares.
O momento escolhido para a estreia marca um ano de ocupação do casarão abandonado conhecido hoje como Espaço Comum Luiz Estrela, situado na rua Manaus. Artistas e ativistas tomaram o local no dia 26 de Outubro de 2013 e desde então o lugar vem se tornando cada vez mais vívido. Tem mais serventia um espaço coletivo onde há formação artística e circulação de pessoas do que um patrimônio obsoleto e entregue ao ostracismo. E é com este espírito revitalizado que o casarão abriga a encenação sobre a qual nos debruçaremos.
Luiz Estrela é o documento determinante da escritura dramatúrgica da peça. O morador de rua, morto na anárquica noite de 26 de Julho do ano passado, é o precípuo elemento extraído da realidade e que articula os desdobramentos narrativos e estéticos ali presentes.
Enquanto documentário cênico, os vários relatos que constituíram as bases para a reconstrução desta personalidade no processo de montagem apresentam-se paralelamente já nas cenas iniciais, cada relato traz qualidades ora próximas ora incrivelmente distantes. Sabemos que ele fora artista, louco, sonhava em ser designer de moda, epilético, bom filho e mau filho, libertário e libertino, porém nunca unívoco. Algo como Boca de Ouro de Nelson Rodrigues, no qual as muitas descrições do bicheiro carioca justapõem características que não formulam a verdade racional dos fatos, mas criam perspectivas parciais e deformadas pela afetividade dos muitos indivíduos que circundam o universo dele. Mas, ao contrário da tragédia rodriguiana, as versões díspares em Luiz Estrela.. se manifestam lado a lado e ao mesmo tempo, fabricando um efeito relativamente cubista; isso permite que as várias faces da figura tridimensional se mostrem de uma só vez, chapadas, confundindo a visão. As múltiplas facetas de Estrela são exibidas concomitantemente, distorcendo sua própria forma e contrariando a ideia que costumeiramente se tem acerca do documentário, e que o teórico Bill Nichols chama de “impressão de autenticidade”, isto é, a propriedade que o documentário tem de se apossar objetivamente do real. A partir do momento em que há um recorte e manipulação do que se fala, o campo subjetivo se revela. A questão se torna ainda mais densa quando em cena vemos quatro intérpretes dar vida a Luiz Estrela, sendo que um deles é mulher (Michele Sa). O compromisso com o real documentado não perde de vista a teatralidade da construção artística.
A epicização de incontáveis passagens torna ainda mais firme o nó desse dilema. O distanciamento como recurso que concede ao espectador ferramentas para tecer seu posicionamento crítico sobre o que é visto, é, em Luiz Estrela…, um artifício que avoluma as indagações sobre quem é o documentado e o que é verossímil na sua história/estória. Os mecanismos teatrais que compõem a estrutura da peça são descortinados pela própria encenação, e a “ilusão teatral” se desmantela.
O grande número de canções em cena reforça o teor épico, pois a maioria delas não atua unicamente como trilha sonora de ambiente, mas comentam a ação e fragmentam o fluxo da trama. Músicas como Vaca Profana de Caetano Veloso, ou o Bêbado e a Equilibrista interpretada por Elis Regina já possuem em si uma visão mais aguçada sobre o corpo social e corroboram para a crítica aguda da obra.
A ação não se desenvolve em um só espaço, mas de forma móvel e em palcos simultâneos. Os atores se apoderam da rua usufruindo dela sua materialidade cotidiana, ressignificando a paisagem que é tão habitual, além disso, o ato de caminhar ao longo da rua Manaus retira parte da passividade contemplativa do público; ele é solicitado a correr, andar, sentar-se e levantar-se, ações banais que, emolduradas no contexto cênico coletivo, possibilitam congregar todos num só corpo. Mesmo quando algum membro desse corpo se recusa a sentar, tapando-lhe a visão, não se pode estar indiferente a ele, e talvez entrar em contato com o próximo e pedir que ele se sente pareça ser a mais sensata opção.
Caminham conosco diversos personagens, a maioria deles é composta por tipos sociais ou alegorias altamente estilizadas que se misturam com a multidão de espectadores. Em alguns momentos desempenham uma ação específica, executam um solilóquio ou dialogam com o público. A noiva frustrada, a grávida indigente e a louca da rua ganham espaço juntamente com personagens tipificados da Commedia Dell´arte tais como Tartaglia, Pantaleone e Zanni, que ocupam o seu lugar cômico e mantêm correspondências instigantes com a realidade. Eles elaboram aquele universo fictício ao mesmo tempo em que estão junto de nós, observando e reagindo ao que acontece da mesma forma como o fazemos. Somos tão reais ou diferentes destes personagens assim?
Um ponto chave de Luiz Estrela ou Os Escombros da Babilônia é o documento vivo em cena: Vidigal. É o amigo e conhecedor mais aprofundado de Estrela. Vidigal acompanha tudo e participa mais efusivamente de algumas partes. Ele se situa numa região fronteiriça delgada entre o real e a fantasia. Sua presença é também o comprometimento com a realidade e a intenção de documentar, ainda assim, quando adentra a moldura cênica e se deixa tocar pelas circunstâncias teatrais, Vidigal ganha algo de ficcional. Ele ainda é interpretado por outro ator (Alexandre Hugo) e este choque abrupto entre os dois planos – ficcional e real – perpassa e altera a recepção daquele evento tão curioso. Vidigal pode ser encarado como aquilo que Roland Barthes chama de “o efeito de real”, ou seja, é um elemento que em um discurso funciona como índice de uma realidade exterior ao mundo da obra. O documento vivo se desloca entre estes dois universos e balança certas convicções acerca do que é ou não real. A construção daquilo que chamamos de realidade é fundada em nossas idiossincrasias, crenças e valores pessoais e sociais, de tudo aquilo que conhecemos empiricamente (ou não). Se não soubéssemos qual dos dois Vidigais era o ator, como poderíamos discernir entre o profissional e o amigo de Estrela? A recepção deste fato está engendrada no nosso conhecimento do mundo e na recepção dos acontecimentos dele. A noção de realidade não pode ser unificada ou objetivada na sua totalidade, porque ao fazer isso não levamos em consideração que seu próprio conceito foi construído pelo homem, criatura subjetiva e filha do seu tempo.
O final da peça se dá nos moldes de um cabaré, combinando elementos dos populares vaudevilles norte-americanos, com ambiência acanalhada, comicidade vívida e apresentações irreverentes e despudoradas. Todavia, neste ponto o espetáculo se tergiversou um pouco; houve um afastamento das pungentes indagações estilísticas e sociais que estavam se instituindo.
“Há tantas estrelas sendo apagadas”, diz um dos personagens. Os fatos atuais ratificam esse parecer. Há uma constante banalização da vida marginal e uma marginalização do ser humano que mais se assemelha a uma onda truculenta que arrasta tudo e todos. Os preconceitos e delimitações discriminatórias são algozes cruéis e perseguidores ferrenhos. Pode ser que Estrela não tenha sido morto diretamente por alguém, contudo a cada adjetivo que recebia uma parte sua era assassinada, pois outras tantas eram ignoradas, e sua complexa formação, como a de qualquer ser humano, era coisificada. Lamentavelmente, esta estrela não brilhou mais. O ser humano que passa da potência para o ato, e se completa neste ciclo, neste caso passa da vida para a morte. É essa a maior realização de Luiz Estrela? Alcançar a grandeza do ser somente na morte?
07-11-2014