“Esta Criança” |
por Luciana Romagnolli
Para uma conversa que pode ser a derradeira, a filha se senta em uma cadeira de madeira padrão, dessas que se tem em casa. O pai se acomoda em uma versão miniatura do móvel, daquelas feitas para quartos infantis. Nessa desproporção entre idade e tamanho está um elemento crucial do novo espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro. “Esta Criança” embaralha quem é a criança e quem é o adulto nas relações familiares. Em outras palavras: mostra que se é, ao mesmo tempo, adulto e criança, filho e pai.
Não à toa, a atriz Renata Sorrah não se limita às personagens mães. Nem Giovana Soar, duas décadas mais jovem, faz somente sua filha. Assim como elas, Edson Rocha e Ranieri Gonzalez transitam por distintas idades nas dez cenas curtas escritas por Joël Pommërat. Cada uma sintetiza, com um olhar bruto para os afetos, emoções relativas ao convívio familiar.
São muitos os pontos de estreitamento possíveis com o espetáculo anterior da companhia, “Isso Te Interessa?”, tantos quantos são os que se distanciam. De novo, a família é vista de uma perspectiva ampla, com atenção às fissuras do que se suporiam serem relações de afeto e proteção. Uma cartela de culpa, medo, raiva, rancor, expectativa, frustração e amor, suscetível à irregularidade da pungência de cada micro-história.
A diferença está no tom. A crueza que em “Isso Te Interessa?” se mostrava na nudez dos atores e na própria estrutura das falas, em Esta Criança toma o sentido de crueldade. E se revela em tons sombrios e nas atuações, com emoções carregadas e reações histéricas. Marcio Abreu aproveita o potencial dramático de Renata Sorrah; em troca, a atriz adere à lógica de encenação do diretor, configurando um verdadeiro encontro.
O espetáculo toma outra dimensão pelos efeitos de presença desencadeados desde a cena inicial, quando do breu total vai se revelando a atriz sobre um chão enviesado. Essa primeira imagem se assemelha ao desfecho da instalação “Desvio para o Vermelho” (sem o efeito de cor) do artista plástico carioca Cildo Meireles, exposta no Instituto de Arte Contemporânea de Inhotim (MG) – uma pia torta envolta em breu. A sensação imediata para o espectador é de perda da referência física de mundo fundada num horizonte estável – provocada pela conjunção do cenário de Fernando Marés com a luz de Nadja Naira.
“Esta Criança”. |
Outro momento de intenso efeito de presença ocorre quando os atores confrontam a plateia com olhares penetrantes, que evocam identificação e gravidade. São estratégias que permitem transcender a racionalidade do retrato familiar hostil para alcançar uma relação bem mais direta e desestabilizadora: entre as pessoas que compartilham aquele espaço. Entre artistas e público.
A atenção crescente que a companhia vem recebendo país afora tem raiz na aptidão para eleger textos contemporâneos que reelaborem temáticas universais em estruturas singulares, e para deles retirar os parâmetros do que será visto em cena, do cenário à atuação. Ao mesmo tempo, a situação de encontro com o público é trabalhada nas sutilezas, pelo endereçamento de falas e olhares. Aí reside muito da atualidade e da relevância do grupo: em estabelecer um vínculo forte tanto com o texto quanto com o espectador.
*Espetáculo visto em dezembro/2012, no Rio de Janeiro. Texto originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo, em janeiro/2013.