Breves notas sobre monólogos contemporâneos a partir de “Alors, est-ce que c’est là?”, de Clémentine Baert (França)
— por Victor Guimarães —
Clémentine Baert em “Alors, est-ce que c’est là?”
Rosto conhecido do cinema francês recente – por ter estrelado filmes de diretores de prestígio na França, como Jean-Charles Fitoussi e Emmanuel Mouret –, Clémentine Baert é uma atriz e dramaturga jovem, mas já com uma carreira sólida e instigante. No teatro, trabalhou seguidamente com Bob Wilson, Pascal Rambert e, mais recentemente, com o português Tiago Rodrigues. Ela vem desenvolvendo uma escrita atoral singular — prática sustentada pele atuação, que se torna um pensamento encarnado do trabalho corporal e vocal, e que se expressa na interpretação de diferentes papéis, partam eles ou não de textos próprios. Uma materialização privilegiada dessa escrita é o monólogo “Alors, est-ce que c’est là?”, no qual atua, dirige e assina a dramaturgia. No caminho até essa última criação, que teve temporada no Théâtre de Genevillers em abril, Baert transitou entre disciplinas – o teatro, a dança, o canto – e realizou outras duas obras solo: a performance “Intérieur à definir”, em 2001, e o espetáculo infantil “Un matin”, em 2016, igualmente concebido, protagonizado e dirigido por ela.
À primeira vista, “Alors, est-ce que c’est là?” parece déjà vu : sozinha em cena, em uma deambulação à beira do desmoronamento, uma mulher em crise se debate com as memórias fragmentadas de um amor que partiu. O motivo recorrente e o arco algo previsível, no entanto, são apenas a porta de entrada para um trabalho minucioso, que se revela em filigrana. A figura dramática ausente, entre pai e paixão, é ao mesmo tempo a âncora do drama, para onde confluem todas as memórias (um encontro marcante em um cemitério, as antigas lições, o magnetismo daquela presença) e o buraco que permite que o pensamento flutue em voos solo, entre o lirismo e o desespero, entre o acalanto e a loucura. Essa poética ao mesmo tempo lacunar (isenta de pretensões de completude, aberta à deriva do espectador) e firme – porque concentrada e precisa – se materializa nos movimentos acurados e na voz meticulosa da atriz.
O espetáculo me conectou com alguns outros, vistos recentemente, que indicam que a aposta no fluxo de pensamento como matéria poética do espetáculo solo tem sido uma busca recorrente do teatro contemporâneo. Certamente se trata de uma busca de longa data, mas não pude deixar de notar a recorrência. Na cena brasileira recente, essa investigação é a base de “Fluxorama”, conjunto de quatro monólogos de Jô Bilac dirigidos por Monique Gardenberg em 2017 (um deles também encenado antes como o solo “Amanda”, de Rita Clemente) e pode ser encontrada, de forma muito peculiar, no incontornável “Vaga Carne” (2016) de Grace Passô, que já motivou um texto de Luciana Romagnolli e outro de Marcos Alexandre aqui no Horizonte da Cena. Em “Alors, est-ce que c’est là?”, o fluxo ganha uma inflexão própria: com os ouvidos bem assentados em uma estrutura reconhecível, de posse de algumas coordenadas básicas de navegação entregues logo ao início, o espectador se liberta para fruir o texto e a performance de Clémentine Baert com uma atenção renovada, concentrada na densidade do encontro – e, por vezes, do desencontro – entre o corpo e a voz. Mais do que em partituras complexas – essas que podem contribuir para uma corporalidade exuberante como a de “Vaga Carne”, mas que frequentemente servem como muleta para as debilidades do texto –, a performance de Baert se baseia em uma ocupação concentrada do espaço, em posturas contidas e gestos mínimos – que, no abrigo criado pela iluminação econômica e pela trilha sonora noise minimalista, ganham amplitude e relevo.
O trabalho da atriz impressiona. A dicção cristalina, o timbre saboroso, o exato controle das alturas e dos volumes, mas sobretudo a inventividade vocal, capaz de criar uma escala harmônica onde menos se espera (a enumeração cantada, num crescendo até o falsete, das localizações das lápides do Père-Lachaise) ou de variar entre estados emocionais diametralmente opostos em segundos: da ternura à raiva, da angústia extrema à decisão consciente. Mesmo quando não canta, Baert ataca as sílabas do texto com uma dicção de cantora lírica, que faz vibrar cada entonação, cada fôlego; mesmo quando a situação de fala é a mais “natural” e cotidiana, a voz é plena de melodias e silêncios expressivos.
O grande cineasta argentino Leonardo Favio dizia que gostava de trabalhar com o rosto do ator como se seu instrumento de trabalho fosse um cinzel. Usava as mãos, dirigia cada movimento do rosto no quadro, e é isso que confere a seus close-ups o aspecto marmóreo (e, ao mesmo tempo, fortemente vivo) das grandes esculturas clássicas. A abordagem do trabalho corporal e vocal em Clémentine Baert é, também, intensamente plástica. Embora não desvincule corpo e voz de maneira tão radical quanto “Vaga Carne”, o acordo entre a dicção e o estado corporal da protagonista em “Alors, est-ce que c’est là?” tampouco se baseia no psicologismo reinante que, via de regra, transforma o corpo-voz em uma máquina-organismo íntegra e irrefutável; a relação entre as duas instâncias não é fava contada, mas território aberto à experimentação. O espectador de Clémentine Baert está diante de um corpo tornado escultura sonora, no interior do qual a voz se modula, corre sinuosa, desvia para um clima inesperado, volta a arrebatar, muitas vezes em harmonias dissonantes com os estados da personagem sugeridos pelo texto.
É nesse limiar que o trabalho de Baert roça outra escrita atoral contemporânea das mais instigantes: a de Marjorie Estiano como Valquíria, no terceiro monólogo de “Fluxorama”. Na peça, a atriz encarna um desencontro singular entre corpo e voz: embora a situação dramática seja pura ação – trata-se de uma maratona, a atriz já entra em cena correndo (sem sair do lugar) e assim permanecerá durante toda a peça –, sua voz tem de dar vazão aos devaneios mais diversos, da lembrança do mar às memórias de infância, que acometem a corredora em sua jornada. O que mais impressiona, no entanto, é o jogo violento entre estrutura e aleatoriedade: enquanto o corpo corre num ritmo ininterrupto, a voz opera em frequências outras, por vezes inversas, nunca submissas à necessidade de expressão de um suposto estado emocional interno.
O corpo e a voz são matérias plásticas que a atriz tem à disposição para modelar, como as massas de tinta diante da tela de um pintor. Essa capacidade já era perceptível nos fascinantes monólogos abrigados pelos enquadramentos frontais do “Garoto” (2015) de Júlio Bressane, nos quais a atenção minuciosa às modulações do texto convive com uma assinatura vocal própria, nunca previsível, sempre surpreendente. A próxima palavra é sempre a promessa de um novo acidente na entonação, nunca o mero veículo de um discurso qualquer. E se no cinema a restrição do enquadramento converte o rosto em tela pulsante, no teatro é o corpo – em sua ocupação peculiar do espaço, em perpétuo movimento e ao mesmo tempo inerte – que se transforma em escultura movente, numa economia gestual que destoa radicalmente dos movimentos inteiramente submissos à expressividade sentimental que marcam os outros três monólogos de “Fluxorama”.
Durante a montagem de “Gente da Sicília” (2001) retratada por Pedro Costa em “Onde jaz o teu sorriso?”, há um momento que sempre me volta à memória. No curso de uma inesquecível discussão com Danièle Huillet em torno da inclusão ou retirada de um único fotograma ao final de uma sequência do filme, Jean-Marie Straub diz: “Podem haver mais acontecimentos no rosto de um ator que fala do que na profusão de planos de um filme de ação”. Em “Alors, est-ce que c’est là?”, quando milhares de cubos de gelo subitamente despencam do teto – provocando uma imagem de forte impacto visual e sonoro –, o que poderia ser um golpe de efeito barato se torna um elemento a mais de uma encenação marcada por outros milhares de acontecimentos plásticos, vocais, corporais, tão arrebatadores quanto a queda de uma massa gelada.
A frase de Straub encontraria um abrigo ainda mais certeiro na sequência do filme “Elon não acredita na morte” (Ricardo Alves Júnior, 2016) protagonizada por Grace Passô. Bastam um close-up bem feito e alguns segundos de tela para que a atriz transforme o próprio rosto em um território de invenção figurativa: do tremor do olhar à expressão indecifrável, da rouquidão súbita da voz aos movimentos em falso da boca, o breve plano condensa alguns anos de maturação da escrita atoral de Grace. Essa capacidade de tornar vaga a própria carne, de desinvestir o corpo da densidade que lhe parece ser “natural” para fazer variar as formas de entumecimento é ao mesmo tempo o centro da virtuose de “Vaga Carne” e o cerne de sua invenção política. Fazer circular as vozes, desfazer a coerência identitária do corpo, conjugar o singular ao múltiplo: eis alguns dos desafios urgentes que nosso beco sem saída histórico encerra.
Rita Clemente como “Amanda”, Marjorie Estiano em “Fluxograma” e Grace Passô em “Vaga Carne”
E se a busca de novas relações entre corpo e voz e a invenção de outras figuras dramáticas, no limite não assimiláveis à subjetividade (como em “Vaga Carne”) é o terreno poético mais promissor dos solos que tenho visto, o maior risco dos monólogos contemporâneos – perceptível à exaustão no restante do “Fluxorama” de Gardenberg – é fazer do fluxo um acontecimento exclusivamente textual, cuja potência de selvageria não penetra a cena e não encontra uma tradução igualmente disruptiva no corpo do ator ou da atriz. Amansado, transformado em mero desvario catalogável, o fluxo se anula na obsessão psicológica da teledramaturgia, cuja expressão cabal é a Amanda de Deborah Evelyn. Qualquer traço de ruptura na experiência do espectador é neutralizado pela performance que clama pela identificação, pelo crescendo emocional que nunca foge ao protocolo, pelos trejeitos plenamente encontráveis no restrito cardápio de gestos estabelecido pela telenovela.
Na “Amanda” de Rita Clemente, o texto de Jô Bilac é friccionado por um diapasão diametralmente oposto, despojado, como se atriz estivesse sempre com um pé atrás em relação à personagem (traço de autoconsciência impensável na versão de Evelyn) e, ao mesmo tempo, como se algo da experiência da atriz contaminasse a história dessa insólita mulher que perde, um a um, os órgãos dos sentidos. A interpretação em tom menor toma um desvio em relação ao melodrama, abraça de forma inventiva a comicidade do texto e instiga no espectador uma modalidade de engajamento inteiramente distinta. Essa junção entre autoconsciência extrema e desrazão, entre reflexividade e improviso é uma das conquistas mais notáveis da escrita e da atuação de Rita Clemente (de quem infelizmente não vi a lendária montagem de “Dias Felizes” de Beckett).
Há, no entanto, um risco: o excesso de despojamento pode beirar a displicência – como em alguns momentos da Laura de “Ricochete” (direção de Rita Clemente, 2016), ao menos em seu estado à época da estreia –, e, no limite, provocar uma espécie de blindagem à crítica que é um dos vícios mais presentes no teatro contemporâneo. O que em Ricochete não chega a comprometer o espetáculo arruína inúmeras peças que vi nos últimos anos: a autoconsciência e o fracasso como programa (apostas recorrentes também no cinema brasileiro recente) se valem de um trunfo conceitual que subsome toda a mise-en-scène e parece dizer ao espectador: é tudo de propósito; portanto, imune ao julgamento e à confrontação. Nas constantes variações entre a encarnação de um personagem e um regime de conversação aberta com a plateia, por exemplo, é comum que nem a encarnação, nem a conversa se efetivem como experiência cênica, mas se pretendam redimidas pelo conceito. É como se o saber compartilhado em relação à performance conscientemente fracassada se tornasse um álibi para uma encenação frouxa, sem variações, que se sustenta inteiramente em um acordo tácito que já havia sido estabelecido à partida. O que um procedimento como esse parece ignorar é que mesmo uma atuação ruim precisa fazer valer sua ruindade ou transformá-la em outra coisa (algo de vivo e pulsante na experiência do espectador).
Esse jogo conceitual esvaziado é justamente o que vem sendo confrontado por escritas como as de Clémentine Baert, Marjorie Estiano e Grace Passô. A corporalidade variada de suas performances, o forte sentido de presença e impregnação instaurado pela ocupação do espaço por uma única atriz (que, no entanto, escapa ao confinamento identitário), os desarranjos entre corpo e voz proclamam a elasticidade da experiência teatral e afirmam uma outra via de invenção em relação à discursividade hegemônica. A deriva em direção ao fluxo, é, no fundo, uma aposta renovada em um dos fundamentos do teatro: a capacidade de fazer da experiência do espectador uma aventura visual e sonora, conceitual e emocional que tem na plasticidade densa dos corpos-vozes dos atores – nestes casos, das atrizes – sua matéria primeira.