por Julia Guimarães
O reconhecimento de Grace Passô como dramaturga responsável por renovar a cena teatral brasileira dos últimos anos veio, principalmente, através dos textos que ela escreveu para o seu grupo, o Espanca!. Se é possível um recorte em sua obra, dá para dizer que “Por Elise” e “Amores Surdos” seriam espécies de porta-vozes da sua escritura, seja pelo reconhecimento que tiveram ou até pela longevidade das montagens, as duas primeiras do grupo.
Assim, as recentes incursões de Grace em trabalhos com outros coletivos teatrais, tanto como dramaturga quanto como diretora, parecem não só privilegiar um registro diferente na trajetória desses grupos, mas também modificar alguns aspectos já característicos da própria escrita da dramaturga. É o caso da colaboração com o grupo mineiro Teatro Invertido no espetáculo “Os Ancestrais”, que após estrear em Belo Horizonte, já passou pelo Festival de Curitiba e, recentemente, se apresentou no Festival Latino-Americano de Teatro de Grupo, em São Paulo.
Embora o argumento original para a criação de “Os Ancestrais” seja antigo, o texto foi ampliado e modificado em função do processo criativo com os atores do Teatro Invertido. A hibridez resultante desse encontro favoreceu tanto uma sofisticação dramatúrgica do Invertido em relação aos seus trabalhos anteriores quanto um acento mais crítico e político no novo texto de Grace Passô.
Ainda que o núcleo familiar permaneça como elo com “Amores Surdos” – em especial, pela força da figura da mãe, que tenta manter a ordem em meio ao caos – “Os Ancestrais” abre espaço para um terreno mais cru, mais árido, ou “menos doce”, nas palavras da própria dramaturga. Em cena, uma família pobre se vê na situação-limite de estar soterrada entre os escombros de sua casa após um desabamento e ali reflete sobre sua própria condição.
Através desse mote, o trabalho ousa tocar em questões que, por sua dimensão de trauma, de chaga aberta na sociedade brasileira, tornam sua simbolização e representação bastante complexas.
Uma quase literalidade ganha a cena no início do espetáculo. O desespero familiar em meio aos destroços e o conflito com um assaltante naquela situação de miséria extrema levam a dramaticidade da narrativa ao limite.
Aos poucos, porém, algumas nuances da poética surreal já característica do trabalho de Grace ganham a cena e vão criando uma dimensão mais metafórica e alegórica para o espetáculo. A crueza da situação é contrastada não só pela poesia – em especial nos depoimentos individuais que surgem como lampejos de lucidez e até mesmo de leveza – mas também pelo tragicômico, traduzido principalmente pela figura da avó e pela trilha sonora, por vezes carnavalesca, que ecoa do rádio e de uma caixinha musical.
Nesse fio tenso entre aridez e poética, a cena é permeada por uma atmosfera de angústia que já não se relaciona somente com as consequências do desastre, mas é também provocada pelo sentimento tangencial de injustiça que perpassa a questão da posse de terra no país. E essa atmosfera se traduz, sobretudo, sensorialmente ao espectador.
Além da iluminação de sombra e breu responsável por criar um ambiente claustrofóbico, o cenário do espetáculo remete a uma casa revirada e traz uma perspectiva angular que ressalta a instabilidade geral da situação, além de reverberar no corpo dos atores, que se locomovem quase sempre no plano baixo. Em meio a um chão de terra, eles tentam “escalar” o que sobrou da casa.
É justamente a movimentação e a linguagem desses corpos mancos, que mal conseguem se erguer na vertical, que completa a estética sufocante responsável por levar o público não só a refletir intelectualmente sobre a condição daquela família, mas também a experienciá-la, de algum modo, fisicamente.
Contudo, a grande virada do espetáculo, e o que confere o sentido mais fortemente crítico ao trabalho, se dá quando os personagens, plenamente conscientes de sua situação, expõem que a tragédia maior não é necessariamente aquela imediata, que ganha visibilidade na mídia, pelo seu caráter de melodrama e apelo à comoção nacional. E, sim, a que se revelará posteriormente, quando a família for salva dos escombros e precisar novamente se reerguer do zero.
Sem medo de um discurso por vezes bastante direto, “Os Ancestrais” se lança na arriscada e necessária tarefa de colocar o dedo nas feridas sociais do país. E esboça um olhar político que oscila entre o teatral e o performativo na tentativa de encontrar uma forma renovada de tratar de assuntos que beiram o irrepresentável, por sua considerável complexidade.
Julia, a cena deque mais gosto no espetáculo é justamente a do breu, na qual as mãos dos atores…(não vou dar spoiler). Me lembra a cena da desapropriação do público, ao ser retirado o banco, em Proibido Retornar. É justamente o momento em que todo o discurso poético e político ouvido e visto até em tão é experimentado pelo espectador no próprio corpo, ganhando outra potência.
Julia, a cena deque mais gosto no espetáculo é justamente a do breu, na qual as mãos dos atores…(não vou dar spoiler). Me lembra a cena da desapropriação do público, ao ser retirado o banco, em Proibido Retornar. É justamente o momento em que todo o discurso poético e político ouvido e visto até em tão é experimentado pelo espectador no próprio corpo, ganhando outra potência.