— por Elisa Belém –
Crítica escrita a partir do espetáculo “Talvez eu me Despeça”, da Cia Afeta (Belo Horizonte/MG)
Despedir não é fácil. Morrer não é fácil. A despedida começa na última noite em que nos vimos, quando você me pediu para te telefonar, para gente se encontrar, só você e eu. Tínhamos muito o que conversar sobre a Inglaterra, sobre o teatro, a universidade, a vida. Você não imagina como fiquei feliz com esse convite!
Mas agora, eu estava longe, do outro lado do oceano, sentada no banco de uma praça. Por força do acaso, não acessava a Internet há dois dias. Pensava muito em você. Tentava te avisar, por pensamento, que não te telefonei, pois, nos meses seguintes ao nosso encontro, me mudei de cidade e, logo depois, de país.
Este foi o primeiro dia em que realmente senti frio e esse frio, aos poucos, chegou até a minha alma. No dia seguinte, ao abrir as redes sociais, o choque, a perplexidade. Um tiro. Uma bala atravessou seu corpo e sua alma partiu para um outro mundo. Esse tiro atingiu muita gente.
De Manhattan, eu queria te contar sobre as peças que vi – do Living Theatre, do Brother, Bread and Puppet Theater. Acho que você gostaria. Eram peças que não negavam a política, e sim, a assumiam, a começar por suas estruturas baseadas na participação da comunidade – atores, espectadores e não atores entrando em cena juntos para desfazer silenciamentos, para falar sobre as desigualdades, as injustiças, os jogos de poder, as barbaridades cotidianas, com honra, poesia e, às vezes, humor. Convivemos pouco, Ciça. E a morte chega sempre cedo demais. Mas é impossível esquecer sua vida e também sua morte.
Em uma das cenas do espetáculo Talvez eu me despeça[1], a atriz Beatriz França lê trechos de cartas de despedida escritas para Ciça, por seus amigos. Esta aqui seria a minha carta. Cecília Bizzotto foi atriz, professora de teatro e também militou pelas causas sociais. Sua vida foi interrompida por um tiro dentro de seu próprio quarto, durante um assalto em sua casa, na cidade de Belo Horizonte (MG), em 2012.
Entendo a peça Talvez eu me despeça como um ato de reparação, na tentativa de tratar uma ferida aberta no corpo da cidade. Penso que esse trabalho é como uma performance, já que baseado em um fato que realmente ocorreu, além de ser tecido pelas impressões, os afetos pessoais da atriz e criadora Beatriz França, apresentando um caráter autobiográfico. Além das breves cartas dos amigos, há cenas que Ciça realizou como atriz e que são reencenadas diante dos espectadores. Há uma máquina de lavar, roupas, imagens de vídeo, o áudio da reportagem nas redes de televisão veiculando seu telefonema para a polícia e um grito. A trilha sonora é composta por barulho, sons cotidianos como sinos e sirenes, bem como trechos de músicas. Em sua totalidade, a trilha forma uma camada na dramaturgia do espetáculo, que lhe confere maior densidade.
Ao longo da peça, se faz também o convite para saborear um bolo e constatar que a vida segue. E como muitos trabalhos da linguagem da performance, não necessita ser apresentado muitas vezes para cumprir sua função. Isso porque é um acontecimento, um evento e não se vincula à durabilidade no tempo, correspondendo à uma passagem. E também, a um ato de coragem. É como a autora Judith Butler (2015) nos conta: a vida é precária, a vida é passível de luto.
Penso se é possível perdoar. E se é preciso perdoar. Sim, é preciso perdoar a precariedade da vida. Na última cena do espetáculo, a atriz Beatriz França se equilibra, ficando de pé sobre dois copos de alumínio, assistindo à projeção do vídeo que mostra a si mesma entrando no mar e brincando com um cachorro. A altura da atriz e seu corpo forte geram um contraste com a ação que remete à infância e, de repente, ela poderia ser uma gaivota. Curioso pensar que logo na entrada do público, outra imagem era projetada na mesma tela: duas mulheres brincando com um bebê no mar. Esse mesmo mar é referência constante ao longo da peça. Aquela última cena me fez lembrar a peça A Gaivota, de Tchekhov. Esta é uma peça da qual gosto muito e que me debruço sobre ela, mesmo sem entende-la por completo. Sem entender como Tchekhov teve coragem de escrever destinos tão brutos para seus personagens.
O texto A Gaivota, de Tchekhov, pode ser analisado como um espelho da peça Hamlet, de Shakespeare. Alguns trechos de Hamlet aparecem em Talvez eu me Despeça. São falas que descrevem o afogamento de Ofélia no lago ao redor do castelo, conforme foi interpretado em vida por Ciça. Nina, de Tchekhov, é um reflexo de Ofélia, de Shakespeare, que inspirou vários trabalhos da companhia de teatro da qual Ciça e Beatriz faziam parte.
Na peça A Gaivota, os jovens Nina e Trepliov moram em propriedades ao redor de um lago. Nina quer ser atriz e Trepliov, dramaturgo e encenador. Numa ocasião, Nina conta a outro escritor, Trigórin, que Trepliov havia matado uma gaivota e a deposto a seus pés dizendo que, em breve, se mataria daquele jeito. Ao ouvir, Trigórin anotou: “Uma ideia para um conto curto: uma jovem vive na beira de um lago, desde a infância, como a senhorita; ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre, como uma gaivota. Mas de repente aparece um homem, ele a avista e, por pura falta do que fazer, ele a destrói, assim como aconteceu a essa gaivota”. (TCHEKHOV, 2004, p. 51)
Se o relato da morte, às vezes, parece um conto curto, é preciso celebrar a vida. Isto porque, a vida nunca é um conto curto. A vida se parece mais com uma imensa narrativa, independentemente de sua duração. Talvez por isso, no início do espetáculo, a atriz Beatriz França avise aos espectadores que ali se dará uma festa de despedida. E, mesmo já estando em cena, informa que o espetáculo irá começar “daqui a pouco”, quando ela entrar pela porta com os olhos vendados. Pede aos espectadores para tentarem olhar para ela como se fosse a primeira vez que a vissem, como se a gente nascesse e morresse a cada instante, a cada piscar de olhos.
E como em toda boa festa, há música. Em dois momentos, Beatriz sobe numa pilha de roupas no chão, pega um microfone e canta: tu me acostumbraste a todas esas cosas… ai, Dindi, se soubesses o bem que te quero…. A festa é para que todos – atriz, equipe de criação, espectadores e você, Ciça, saiam de “alma lavada”. E, cá entre nós, a sua amiga te observou bastante, pois ao te imitar, o faz de forma tão fiel, que a gente te vê em cena! Isto mostra que você permanece no tempo. E passar por um luto também requer um recomeço, um seguir adiante, como coloca Beatriz. Como podemos continuar vivendo?
Judith Butler (2015) realiza uma reflexão muito interessante a partir das vidas perdidas em situações de guerra que, ao se tratar de números e estatísticas, podem ser aproximadas à realidade brasileira. A autora afirma que as histórias de vidas perdidas e os números se repetem todos os dias num quadro que parece irremediável. Para essa autora, é preciso reconhecer a condição precária da vida a fim de mantê-la; fazer com que a vida seja apreendida como vida e não fora de um escopo de reconhecimento que estabeleça uma justificativa para o ato de interrompê-la. Pergunta então: “(…) o que seria necessário não somente para apreender o caráter precário das vidas perdidas na guerra, mas também para fazer com que essa apreensão coincida com uma oposição ética e política às perdas que a guerra acarreta?” (BUTLER, 2015, p. 29)
Assim sendo, para Butler, afirmar que uma vida pode ser lesada, perdida ou negligenciada até a morte é como sublinhar sua precariedade, já que várias condições sociais e econômicas devem ser atendidas para manter-se uma vida:
“A precariedade implica viver socialmente, isto é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro. Isso implica estarmos expostos não somente àqueles que conhecemos, mas também àqueles que não conhecemos, isto é, dependemos das pessoas que conhecemos, das que conhecemos superficialmente e das que desconhecemos totalmente. Reciprocamente, isso significa que nos são impingidas a exposição e a dependência dos outros, que, em sua maioria, permanecem anônimos. Essas não são necessariamente relações de amor ou sequer de cuidado, mas constituem obrigações para com os outros, cuja maioria não conhecemos nem sabemos que nome têm, e que podem ou não ter traços de familiaridade com um sentido estabelecido de quem somos ‘nós’”. (BUTLER, 2015, p. 31)
Isso posto nos ajuda a entender que a condição de precariedade da vida torna necessária a constituição de um sentido de quem somos “nós”, ou mesmo, um sentir-se “nós”, que permanece ainda bastante disperso no corpo da cidade. As vidas de um e de outro dependem de todos. Por mais simplista que pareça, esta é uma prerrogativa esquecida. Talvez o teatro tenha aí uma função, como em sua origem, de reunir e gerar uma reparação numa comunidade. O que Butler (2015, p. 33) nos lembra é de que temos que realizar uma crítica do direito à vida, pois toda vida, se reconhecida como tal, é passível de luto.
Esse fato, ser passível de luto, é, para essa autora, uma condição do surgimento e da manutenção de uma vida. A pressuposição de uma vida cuja perda é passível de luto, significa que aquela vida pode ser considerada vida. De acordo com Butler (2015, p. 32-33): “Sem a condição de ser enlutada, não há vida, ou, melhor dizendo, há algo que está vivo, mas que é diferente de uma vida”. Ou mesmo: “Uma vida não passível de luto é aquela cuja perda não é lamentada porque ela nunca foi vivida, isto é, nunca contou de verdade como vida” (BUTLER, 2015, p. 64). No entanto, para que uma vida seja passível de luto é preciso tornar-se uma “vida vivível”. E, nesse sentido, Butler argumenta que nenhum direito pode evitar todos os processos de degeneração e morte. A obrigação que surge, no entanto, está no fato de que somos “(…) seres sociais desde o começo, dependentes do que está fora de nós, dos outros, de instituições e de ambientes sustentados e sustentáveis, razão pela qual somos, nesse sentido, precários” (BUTLER, 2015, p. 43).
Nenhuma vida pode ser tirada, banida, destruída. Apreender e reconhecer a precariedade da vida é assumir a nossa obrigação para com os outros. É notar cada vida como uma vida, ou seja, uma vida que merece ser vivida, que se regozija em ser vida. A condição de ser passível de luto confere uma honra ao viver e conduz ao horror quando há indiferença ao vivo.
Na cena em que Beatriz França nos convida a comer um pedaço de bolo, ela nos conta sobre os últimos encontros com você, Ciça. Nessas ocasiões, vocês conversaram sobre futuros projetos de criação e questionaram qual é o papel do artista hoje. Certamente, esse papel é múltiplo. Um de seus aspectos parece ser discutir uma tal crítica do direito à vida. Conforme Butler reflete a partir da poesia que escapa das celas das prisões de Guantánamo e mesmo, as imagens de fotografias digitais do presídio de Abu Ghraib:
“O movimento da imagem ou do texto fora do confinamento é uma espécie de ‘evasão’, de modo que, embora nem a imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão, nem interromper um bombardeio, nem, de maneira nenhuma, reverter o curso da guerra, podem, contudo, oferecer as condições necessárias para libertar-se da aceitação cotidiana da guerra e para provocar um horror e uma indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem o clamor por justiça e pelo fim da violência”. (BUTLER, 2015, p. 26-27)
O papel do artista hoje, conforme se revela no espetáculo Talvez eu me despeça, conflui para estabelecer uma nova trajetória de comoção (BUTLER, 2015, p. 27) que contribua para uma realidade baseada na solidariedade e não na crueldade.
Por fim, se a vida é criação, temos também a necessidade de criar. E o direito de ser lúdica: representar, dançar, ser e, outra hora, não ser. Conforme os objetivos da companhia de teatro que você, Ciça, e Beatriz integravam: “fazer com que cidadãos de diversas origens e classes sociais possam viver a experiência de se enxergarem como parte de uma mesma comunidade[2]”. Vocês conseguiram. Não dê ouvidos àqueles que te consideraram louca, insana por ter telefonado à polícia na frente do homem que se mostrou um bandido. Daquele mesmo jeito nomearam também Antígona por lutar pelos seus, sendo que a única lei que Antígona conhecia era a lei do amor. E mesmo o devaneio não é insensatez.
Voe em paz, gaivota. De Manhattan, eu me despeço.
Referências bibliográficas
BUTLER, Judith. Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1997.
TCHEKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
[1] O espetáculo Talvez eu me despeça foi realizado pela Cia Afeta – teve sua pré-estreia no dia 21 de agosto de 2014; estreou para o público em geral no dia 22 de agosto de 2014. Foi apresentado na Campanha de Popularização ao Teatro de Belo Horizonte, em 2015, na FUNARTE e no CCBB. Integrou também a programação do festival BH In Solos, da Mostra Novos Coletivos, em outubro de 2015 e do Festival Internacional de Teatro do Alentejo / Portugal, em março de 2016.
[2] Fonte: Informativo da Companhia Lúdica dos Atores.
Disponível em: http://www.telelistas.net/locais/mg/belo+horizonte/producao+teatral/300988735/companhia+ludica+dos+atores. Acesso em 14/04/2016.
Ficha técnica:
Concepção: Beatriz França e Ludmilla Ramalho
Direção: Ludmilla Ramalho
Atriz/performer: Beatriz França
Dramaturgia: Daniel Toledo
Pesquisa dramatúrgica: Beatriz França e Daniel Toledo
Instalação-cenográfica e figurino: Ana Luisa Santos
Composição de Imagens eletrônicas: Carlosmagno Rodrigues
Iluminação: Leonardo Pavanello
Trilha sonora: Patrícia Bizzotto e Barulhista
Direção de movimento: Christina Fornaciari
Preparação corporal: Christina Fornaciari e Guilherme Morais
Preparação vocal: Amanda Prates
Professor de Arte Marcial Chinesa: Thiago Borges
Assessoria de imprensa: João Marcos Veiga
Conteúdo de redes sociais: Ivana Almeida
Designer: Nando Motta
Fotógrafo: Guto Muniz
Coordenação geral: Ludmilla Ramalho
Produção Executiva: Afinal Cultura – Alê Abreu e Val Soares
Realização: Cia Afeta
MUITO BOA CRÍTICA, ELISA CONSEGUIU DESDOBRAR EM VARIOS AUTORES E ASSIM AMPLIAR E REDIMENSIONAR OS SIGNOS DESTE TRABALHO PARA A ESTORIA DA HUMANIDADE CHEIA DE TRAGÉDIAS, DE MORTES, DE EFEMERIDADES ONDE O AMOR CONTINUA SENDO O TRUNFO DE SEGUIRMOS ADIANTE. PARABÉNS !