Crítica a partir do espetáculo “Se eu fosse Iracema[1]” (1COMUM Coletivo – RJ)
– por Mário Rosa –
Fotos de divulgação do espetáculo
Se eu fosse Iracema. Ou se me permitisse seguir a trilha desse devir índia, índio, dessa América invertida, veio aberto da nossa história colonial, do nosso atraso, da nossa modernização precária, o que veria? O que passaria pelo meu corpo? O que ativaria de forças que pudessem balançar as estruturas dos modos de administração do poder? Poder sobre a vida, sobre a circulação do dinheiro, sobre as terras e sobre as formas de viver.
Se eu fosse Iracema e o esforço pela aproximação da complexidade do outro, de uma abordagem que vai além do respeito à diferença, pois é o trabalho de evocação em fragmentos de um mundo que nos é difícil tocar e que parece exigir pesquisa e imaginação para chegar perto, para a compreensão do que não somos, do que podemos compreender e partilhar e, talvez, para alguns, do que se pode retomar, também como ação de combate: a terra, o que faz da terra vida, modos de experimentação de outros saberes e cosmovisões que perspective mundos e jeitos de corpos, outridade.
Ela que se diferencia em cena nesse esforço de imaginar: índias e brancas, índios e não índios.
Ela é Adassa Martins. E o que estabelece em cena neste monólogo faz pensar sobre proximidades e distâncias entre mundos e das formas de dizer sobre realidades outras.
Dizer, denunciar, imaginar.
Entre proximidades e distâncias, pelo corpo em cena, pela diversidade de discursos, pela forma como se estabelece o jogo entre perspectivas-mundo, o trabalho vai além da exposição do estado das coisas, pois expõe num oscilar instigante a força do majoritário (branco) na imposição do poder do dinheiro, de um saber, de uma cultura e do valor de algumas vidas, mas também e principalmente, nos movimentos da atriz, mulher que vira e revira nos abalos intensivos da rostidade, o que não é vazio pela cristalização de um instituído desencarnado. E neste caso, rexistir é força de evocação minoritária, de firmar o devir pelo que pode o corpo quando encontra oscilações de estados de presenças que escapem das atualizações do pensamento colonial.
O que resiste à máquina de guerra necropolítica nesta proposta cênica é o apagamento dessas vidas, não a violência em muitas frentes e camadas. E o monólogo segue esse caminho, o de expor num jogo das diferenças e abalos o que ainda persiste, o que confronta a modernidade que já acabou, o que se posiciona por outros modos de formulação de pensamento e vida e, ainda assim, a ameaça da queda do céu.[2]
Mas antes que o céu caia, o corpo. O corpo da atriz, as variações desse corpo, as aproximações que esse corpo faz de mundos indígenas, esse corpo em estado de imaginação nas cosmologias narradas, nos depoimentos, no que se diz em idioma guarani na primeira cena. Corpo e sua máscara rosto que se aproxima do pajé, da anciã indígena, da cabocla.
Da evocação que a atriz apresenta em cena, há algo de insurgente, como a aparição de naturezas corporais, de existências que abrem frestas no espaço escuro para dizer do que lhe constitui como narrativa de origem, de experiência do vivo e da perspectiva do fim. Dizem quase sempre na iminência da desfiguração e do apagamento pela tinta branca de uma verdade. A verdade do dinheiro, a verdade da mineração, a verdade da razão e da mercadoria show.
A constituição dos nomes, seus apagamentos, a configuração dos rostos, seus apagamentos, a constituição da terra, seu apagamento. A constituição de direitos, seus apagamentos. A constituição de culturas, seus apagamentos. O que ainda fica, o que é permanência quando o extrativismo é ação e retórica de governos à esquerda e à direita? Quando a vida e seus modos são ajustados aos esquemas de desenvolvimento e progresso? Quando “o céu é o limite”? Perguntas paradas no ar.
O monólogo utiliza recursos de iluminação, sons, figurino e cenário que reforçam a ideia de violência, de choque e de desfiguração. No centro do palco, um tronco de árvore cortada. É em torno e sobre ele que a atriz segue em transmuta-ação: narrações, figurações de árvores que não se sustentam, o jogo entre o que se narra, comenta com ironia e os personagens evocados. Ela, se fosse Iracema (mas não é), vestida com uma saia de látex, botas e um colar/foice. E a iluminação que é a luz da floresta e o movimento oscilante que dá a vez e a voz aos corpos/presenças/entidades.
Interessante pensar como o discurso direto, de crítica e denúncia, encontra nos modos propostos pela dramaturgia, direção e atuação um lugar que não se restringe a falar o já sabido. Há um componente em que o corpo se encontra em constante atrito com o discurso, o corpo é atrito. Um corpo que não é indígena, mas de alguém que traz pra si um campo de tensão, de estranhamento e de hibridismo que toma a pele e a enunciação.
Uma imagem forte que interessa aqui destacar da tensão referida diz respeito ao rosto: iluminado por um foco de luz no início do espetáculo ao falar numa língua que não conhecemos; que ao som da leitura do texto constitucional é tocado pela mão da atriz como se estivesse preparando pra guerra e referência ao conhecido gesto de Ailton Krenak em seu discurso na Assembleia Constituinte em 1987. O mesmo rosto que se desfigura com outras partes do corpo ao dizer artigos da Constituição de 88 acompanhado pelo som de uma motosserra.
A ironia também é um recurso presente quando a atriz narradora expõe justificativas e avaliações de grupos sociais para o avanço sobre as terras e sobre os indígenas, para a necessidade do progresso e para a postura dos povos que resistem como podem à expropriação de seus bens. No movimento proposto pela dramaturgia entre campos inconciliáveis, que reforça e complexifica a crítica, fica a questão sobre o que fazer em contexto tão desequilibrado de combate, principalmente se pensarmos no recrudescimento do descaso e da agressão do atual governo. Fica também a percepção de alguns estudiosos sobre o processo de indianização de grupos sociais considerados até então não índios ou que se afastaram desse traço identitário. Movimentos que se expandem em demandas de reivindicação, de tentativas de desmonte pela aposta de um saber do corpo e da natureza que questionam e embaralham a expressão “ só o homem branco salva; os outros homens, selva” ou que reafirmam a inevitabilidade da sociedade contra o estado, como afirmou um dia Pierre Clastres.
Entre alguns nomes citados em cena, temos o do título da peça, Iracema, referência à obra literária de José de Alencar, que não existiu, mas foi e é invenção que expõe a marca indelével da colonização, dos projetos de brasis, do poder de nomear e de decidir sobre localização social dos povos não brancos. Dos outros nomes mencionados, possibilidades, rituais de nomeação e histórias fraturadas pela violência.
Por fim, cabe dizer que nesse monólogo há um pessimismo que se espraia por tudo que foi, tudo que é. E há também o que se pode vislumbrar, na fala final do pajé e nas transmutações da atriz, de um velho mundo que já não existe e da aposta na imaginação e na ativação de outros. Antes do fim.
SE EU FOSSE IRACEMA
Intérprete: Adassa Martins
Dramaturgia: Fernando Marques
Direção, iluminação e cenografia : Fernando Nicolau
Figurino e caracterização: Luiza Fardin
Trilha sonora original e desenho de som: João Schmid
Preparação vocal: Ilessi
Direção de arte e projeto gráfico da comunicação: Fernando Nicolau
Escultura do busto: Bruno Dante
Caracterização das fotos: Luiza Fardin
Fotografia: Imatra
Produção executiva: Clarissa Menezes
Realização e produção: 1COMUM
Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques
[1] Espetáculo apresentado no SESC Palladium (BH) em 15 de junho de 2019, dentro da programação do Palco Giratório.
[2] Referência aqui ao monumental livro A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (Editora Companhia da Letras, São Paulo).