Reflexões a partir do exercício crítico numa dimensão individual e, ao mesmo tempo, coletiva.
– Por Soraya Martins –
Em 2014, comecei a fazer parte do grupo de críticas(os) colaboradoras(os) do Horizonte da Cena. De início, marquei uma posição política para mim mesma: só escreveria críticas a partir de espetáculos pensados, produzidos e encenados por artistas negras(os). Há muito percebia que as (os) críticas(os) de Belo Horizonte (e não só) pouco viam e, tampouco, escreviam sobre trabalhos de artistas negras(os). Quando escreviam, pensavam e analisavam tais produções de maneira redutora, tratando a negrura como um conceito privado de redes de relações e saberes. Nesse sentido, as dimensões estéticas e os elementos formais que geram as peculiaridades dos Teatros Negros eram completamente negligenciados.
Poder escrever críticas para o Horizonte foi a possibilidade de trazer à tona questionamentos sobre os conceitos de estética, qualidade, arte, teatralidade, todos intrinsecamente ligados ao poder e à autoridade racial. Qual conhecimento é reconhecido? E quais não são? Qual estética tem feito parte das agendas dos festivais de teatro? E quais estéticas não? O que é qualidade em teatro? O que não é? Quais grupos e/ou coletivos fazem temporadas nos teatros das cidades? Quais não fazem? Os críticos assistem a quais peças? E a quais não assistem? Elas(es), críticas(os), escrevem sobre quais peças? E sobre quais não escrevem? Quem está “dentro”? E quem permanece fora?
Além de poder trazer para o debate tais questionamentos, o que moveu e move a coreografia do meu desejo é a possibilidade de imprimir na folha em branco, no processo de escrita da crítica, um texto performativo, que articula a experiência estética e existencial da negra(o) na construção cênica. Gosto de dizer que não escrevo sobre um espetáculo de teatro, mas com e a partir de. Com e a partir de reflexões e explosões que um espetáculo possa suscitar nos espaços de pensamento, nas encruzas geográficas e epistêmicas, nos lugares de construção de conhecimento, que apontam para paradigmas outros no fazer artístico e na análise cultural.
É por meio de uma atuação nas frestas do sistema, entre versos perversos e por versos, que tenho a possibilidade de criar, enfrentar, movimentar com alegria e jogar com o singular. Penso num projeto de crítica que parta desse lugar no mundo como ponto investigativo, reflexivo e em devir. Assim, escolho elaborar as guerras, as violências e o racismo em linguagem fabular e de recriação das histórias a partir de saberes e estéticas contra-hegemônicas e da minha íris preta. Nesse viés, a crítica se abre, e deve abrir, para lugares outros na organização do sensível, estabelecendo novos discursos e a possibilidade mesma de miradas alternas em relação às produções estéticas e para além delas.
É nesse sentido que me interessa uma crítica que trabalhe na retessitura da História e da Crítica do Teatro Brasileiro e que, para além de elaborar as ausências e as presenças nos palcos, está implicada em redimensionar e produzir outras histórias e teorias do teatro. Numa tentativa de sistematizar e dar a ver modos e discussões estéticas para além das concepções eurocentradas da cena, rompendo assim com visões “universais” que excluem e tratam como “outras” as poéticas produzidas por artistas negras(os).
A partir desses gestos, tem-se a possibilidade de forjar teorias, conceitos e/ou noções que estabeleçam análises, diálogos e debates mais amplos acerca da multiplicidade das teatralidades. Daí, pode-se alargar e consolidar a própria ideia de um sistema teatral brasileiro, em que se tem também a presença do corpo negro, restituído e constituído no palco, reconfigurando as epistemologias e evidenciando outras formas de sociabilidade em cena.
Estou interessada e busco uma crítica que não seja calcada num contradiscurso, mas uma crítica, radicalmente, da contracultura, que reconstrói desafiadoramente a genealogia crítica, intelectual e moral em uma esfera pública. Desse modo, penso a crítica como uma dramaturgia, em que crio junto, com, a partir e para além do espetáculo, uma crítica que, acima de tudo, reflita e fale dos textos não ditos, das memórias e esquecimentos, dos silêncios e hiatos, das músicas e paisagens, dos cheiros e das histórias que a História supostamente esqueceu de nos contar.
Na perspectiva de uma crítica como dramaturgia, o gesto de fabular é imprescindível, na medida em que a fabulação, ou seja, ficção não como mentira, mas como espaço de criação e força produtiva, aparece como possibilidade de releitura crítica da História: do passado, operando no presente e no futuro, através de uma leitura poética do mundo. Uma espécie de crítica fabular, performática, especulativa e fugitiva. Uma crítica empenhada a redistribuir imagens e imaginários e a produzir rotas de fugas existenciais, estéticas, históricas, críticas, teóricas e da própria ideia de Brasil.
No meu projeto, ziguezagueado no âmbito individual e coletivo, a crítica é um ato de criação e pensamento que passa do “criticar é pôr em crise” para criticar é criar, reimaginar, forjar formas novas de ser, estar, mover e co-mover em cena e no mundo.