(Foto de capa: Pablo Bernardo – Performance Dentro – Anderson Feliciano).
Harlem, fevereiro de 2019.
Soraya,
Faz muito frio e gosto de olhar pela janela. Há uma semana estou em Nova York. A residência na universidade de Princeton foi intensa e reconfigurou algumas percepções acerca das artes negras que haviam se cristalizado no meu imaginário simbólico. Compreendi melhor as questões que elaboro na minha dissertação sobre as Poéticas do Tropeço e penso que contribuirão para o fortalecimento do pensamento que estamos articulando em relação às poéticas negras produzidas em Belo Horizonte.
Ontem saí para procurar livros do Essex Hemphil. Caminhei o dia todo. Baldwin disse certa vez que “todo o Harlem é permeado por uma sensação de congestionamento que lembra a pulsão insistente, enlouquecedora e claustrofóbica que sentimos dentro da cabeça quando tentamos respirar em um cômodo muito pequeno com todas as janelas fechadas”. Ainda não sei bem explicar a sensação que é caminhar por essas ruas, mas me lembrei muito de uma conversa com o Ricardo Aleixo em que ele me contava que, assim como o Harlem nos anos de 1920, Belo Horizonte na década de 1990 havia vivido seu renascimento. Em minhas errâncias por essas ruas, imaginava figuras como ele, Leda Martins, Edmilson de Almeida, Zora Santos, Eustáquio Neves, Jorge dos Anjos, Gil Amâncio, Marlene Silva, Evandro Passos, Adyr Assunção se cruzando por esses nossos belos horizontes naqueles idos. E o mais curioso foi que imediatamente percebi que a Polifônica Negra e a SegundaPRETA possibilitam esses entrecruzamentos de espaços/tempos que estão sempre aqui. Interessante compreender essas dimensões numa perspectiva espiralar e como em cada espaço/tempo elaboramos nossas poéticas. Parece-me haver nessa tentativa de relacioná-los um gesto, chamo aqui de maceração do imaginário, que desarticula certas armadilhas que rondam essas produções que algumas vezes, no desejo de desconstrução do imaginário sobre nossas subjetividades “rejeitam a vida, o ser humano, negam sua beleza, seu pavor, seu poder, ao insistir que apenas sua categorização é real e não pode ser transcendida”.
Mais tarde sairei outra vez, ainda há muito para caminhar e para elaborar. Refletir sobre essa cena contemporânea é compreender que “é somente dentro dessa teia de ambiguidades e paradoxos, dessa fome, desse perigo e dessa escuridão, que podemos encontrar ao mesmo tempo nós mesmos e o poder que nos libertará de nós mesmos”.
Te abraço!
Texas, junho de 2021.
Abraçada, Anderson!
Hoje recebi o link de acesso à minha tese de doutorado. Durante duas semanas esse link apresentava erro, mas agora não. Minha tese está no mundo. Que sensação boa e estranha, ao mesmo tempo! Me lembrei de você dizendo que, há anos, pelo menos uns sete, escrevo esse texto de tese. Sim. Há muito, teço o que está ali, numa cruza e encruza de temporalidades, pensamentos e desejos.
Interessante esse paralelo que o Ricardo traça entre o Harlem da década de 1920 e Belo Horizonte dos anos 1990. Renascer ou lembrar a nós mesmos que estamos respirando! Sim. Em 1995, Belo Horizonte viveu a explosão do FAN, talvez, o primeiro aquilombamento estético que você e eu temos grafado nas nossas memórias contadas e inventadas. Acho que é quase natural pensar esse Harlem-Horizontino em relação aos horizontes suturados e redesenhados de agora, que tentam reconfigurar a experiência espacial da cidade a partir dos e com os corpos negros. A Polifônica Negra e a segundaPRETA são uns dos tantos novos e belos horizontes que vêm como linhagem das linguagens e pensamentos de Leda, Gil, Ricardo, Eustáquio, Adyr, Marlene, Zora, Edimilson, Carlandréia Ribeiro, Meibe Rodrigues, Eda Costa, Tizumba.
Na tese, a Polifônica e a segundaPRETA são pensadas como aquilombamentos, que, no contexto perene de reconceitualização das culturas e das identidades desterritorializadas, configuram-se como ato de se juntar para criar e transformar, ir além, contar e recontar, recarregar os signos de sentidos e produzir histórias e genealogias da diáspora negra, dentro de uma História do Brasil (de uma História do Teatro e da crítica brasileira) ainda a ser feita. São frinchas, aberturas estreitas no sistema que reagem ao colonialismo cultural e criam espaços para a experimentação de novas éticas em arte, para se produzir conhecimento e tensões sobre teatros, performances, dramaturgias e subjetividades negras. Apresentam-se como possibilidades de convívio, afeto, fortalecimento, sentido de pertencimento e amor que, cada vez mais, tem que ser pensado na sua dimensão política, na perspectiva de politização do amor da hooks, numa discussão crítica, a qual considera que o amor precisa ser compreendido, radicalmente, como uma força poderosa que desafia, resiste e inventa caminhos de fuga à dominação.
Alegria solar trocar com você!
Soraya
Lisboa, maio de 2019.
Soraya,
Há dois dias cheguei em Lisboa, vim para apresentar o trabalho “Apologia III”. Alio ao exercício de errâncias por essas ruas o gesto de maceração do imaginário. Compreendendo esse gesto, como diz Cidinha da Silva, como “tecnologia ancestral de produção de infinitos”, recolho cuidadosamente algumas imagens guardadas nos arquivos da memória e, lentamente, numa bacia cheia de água de rio grande, as esfrego com as mãos, criando uma coreografia que me permita extrair delas novos imaginários para minhas poéticas. E como você apontou certa vez, sobre a performance “Apologia III”, “o verdadeiro objeto da lembrança e da rememoração não é, simplesmente, a particularidade de um acontecimento, mas aquilo que nele é criação específica, emergência do novo – um lembrar criador e transformador”.
É difícil estar nessa cidade e não me sentir afetado por tudo que ela representa. Justo ontem à noite, fui ao lançamento do Memórias da plantação. No final da apresentação presenteei Grada Kilomba com os cadernos da Polifônica Negra e da segundaPRETA. Depois de uma folheada rápida, ela ficou curiosa em relação aos projetos. Devido ao pouco tempo, confidenciei a ela que nossos quilombos urbanos são espaços de fabulação e outras alegrias.
Daqui parto para Berlim. O corpo todo pensando, imaginando, alargando-se para novas possibilidades de estar negro no mundo. No festival Amalgam, apresento a performance “Dentro”. Investigo nessa obra o que está dentro e precisa sair. Aqui, o macerar imagens é ainda mais urgente e, como você diz sobre a performance “Apologia III”, coloca “em jogo a capacidade de lidar com as imagens-sentido e incorporar essas imagens ao próprio sentido”.
Depois me conta como anda a escrita da tese. Acredito que o esforço em forjar vínculos entre minhas criações e o pensamento que estamos articulando sobre a cena contemporânea preta gera em mim mais desejo de movimento. Exige aproximações, mas requer distanciamentos também. Ainda é tudo neblina e, talvez por isso, me interessa tanto. Assim como Diadorim para Riobaldo, essa cena é minha neblina.
Te abraço!
Milão, julho de 2019.
“Amor vem de amor” – disse. Neblina! Riobaldo sobre Diadorim. Talvez, também, sobre a gente! Acho que neblina combina com negrura. Ela burla os traçados dicotômicos entre preto e branco, performa a possibilidade de agir, ser e estar nos interstícios entre o preto e o branco. De experimentar o cinza. Amar[elo]. Vermelho. Noir Blue, como na dança-vídeo-performance da artista Ana Pi. São movimentos e relações.
Vivemos neblinas em Paris. A cena da gente comendo sanduíche na Champs Élyseés, vibrando com todas as pessoas negras que desfilavam com suavidade, sem impedimentos, é “nebliática”. Eccoci! Um jogo constante de ressemantizações, de movimentos, fissuras e fabulações das existências. Das est[éticas].
Fissurar para suturar?
O sertão para Guimarães é onde o pensamento se forma mais forte do que o poder do lugar. Troco sertão por segundaPRETA. Por esse aquilombamento que explode a ideia de lugar e se forja, como Beatriz Nascimento nos falou, a partir de uma espécie de sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Anderson, as pessoas fazem e refazem os quilombos nos seus próprios corpos. Corpos-aquilombamentos! A segunda é isso, né? Um projeto idealizado e realizado por muitos artistas negros de Belo Horizonte. Nasceu de um desejo coletivo, a partir das individualidades, de se ter um espaço onde as/os artistas pudessem mostrar seus trabalhos e, também, estabelecer diálogos tensionados e críticos acerca das cenas contemporâneas negras.
É a partir da segunda que o meu corpo-território-aquilombamento forma, da minha neblina, mais neblinas: atrás de uma imagem do Teatro Negro existem outras imagens dos Teatros Negros. É possível trabalhar nas neblinas, de onde se pode perturbar e examinar os objetivos de libertação e criação para que eles não criem armadilhas. É na cena em sombras, fazendo referência ao livro de Leda Maria Martins, que se tecem-e-retecem imagens e textos que inventam os indivíduos, as relações intersubjetivas, os teatros da negrura.
A segunda é ser[tão], “onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”, como está em Grande Sertão: Veredas.
Baci e abbracci.