Crítica de “Um Café da Manhã”, do coletivo Um Café da Manhã.
O disparador do espetáculo “Um Café da Manhã” é um prosaico poema do francês Jacques Prévert (1900-1977) sobre um homem que, após servir-se de café com leite e fumar um cigarro, parte: “E saiu/ debaixo de chuva/ Sem uma palavra/ Sem me olhar”. Sem ater-se aos versos mais do que como sopros de sentido que poderiam se construir com uma teatralidade fundada na dança e no circo – em especial, na técnica do trapézio –, o coletivo de São Bernardo do Campo, com direção e roteiro de Ronaldo Cahin, compõe uma coreografia que vai do chão ao ar traçando os passos da atração à despedida de um casal.
A suspensão do parceiro amoroso, abandonado sem mais, é a primeira metáfora extraída do poema a concretizar-se visualmente em cena, já na cenografia de Natalia Vaz e Frederico Fillipi. Separados, no palco, o lado da mulher (a performer Ana Coll) e o do homem (Kadu Mendes), cada um é indiciado por um conjunto de objetos-ícones suspensos por cordas. Para ela, roupas, batom. Para ele, livros e jornal. Um espaço cindido pelo binarismo homem-mulher padronizado, que seguirá os clichês de gênero para desenhar uma pantomima facilmente reconhecível pela plateia por circunscrever-se às expectativas do mito do amor romântico, no qual cabe à mulher a dor pela falta de envolvimento emocional do parceiro. Nesse sentido, nada de extraordinário.
Os corpos é que o dizem, por meio de movimentos cotidianos realizados de modo inesperado – como a artista a amarrar os cabelos de cabeça para baixo, pendurada na argola, ou o performer a tirar e pôr os sapatos enquanto desenha formas com o corpo preso à corda em altitude. A forte teatralidade da encenação provém dessa passagem do ordinário para o extraordinário. Os próprios objetos circenses são ressignificados num regime de representação – a argola feita espelho, o trapézio como casa. E os movimentos adquirem um caráter sugestivamente metafórico, legíveis à medida em que se atribuam significados às coreografias solitárias cumpridas inicialmente pelos performers em seus trapézios e à união que se segue.
Enquanto ela permanece mais próxima do solo, cumprindo um fluxo de esculturas corpóreas que a põe repetidamente de cabeça para baixo com o peso sobre os ombros, e arrisca alguns movimentos aéreos na argola suspensa, ele sobe mais alto na corda à qual enroscado deixa-se cair, em movimentos que anunciam maior gosto pelo risco. Constroem-se assim as imagens das duas personalidades, por obra de que cada movimento seja mimese ou metáfora a compor pela linguagem própria do corpo uma narrativa mais ou menos clara.
A aproximação dos dois indivíduos solitários é igualmente narrada sem palavras, por uma partitura dançada que incorpora patins e, enfim, o trapézio duplo, seguindo uma progressão de risco. O emparelhamento dos corpos e a sincronia de movimentos traçam a trilha do casal, cuja dinâmica é regida pelo corpo masculino: o primeiro que avança, instantaneamente seguido pela mulher, a quem cabe interpor seu corpo ao dele para criar momentos íntimos. Ações e reações pontuadas pelas expressões faciais de Ana Coll, que humanizam a virtuose da coreografia.
É certo, porém, que o virtuosismo não ocupa o valor mais alto em cena, armada como está na hibridez entre arte circense, dança e teatro, todas linguagens agenciadas para contarem a história ordinária de modo extraordinário. Não se trata, então, de alcançar a ousadia fortemente amparada na técnica semelhante ao visto, por exemplo, no casal de trapezistas de “Acelere”, na abertura do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo. Se lá o trapezista carregava a parceira em grande altitude e por longo período sustentado somente pela nuca (sem rede de proteção), aqui a artista experimenta, apenas por segundos, a suspensão com o mesmo ponto de apoio, a pouco mais de dois metros do chão. Afinal, a técnica está a serviço da dramaturgia, não o contrário; e a atenção do espectador é partilhada entre o risco e o drama. Com a particularidade de que a estética do risco físico metaforiza o risco do encontro amoroso tematizado.
Numa encenação em que movimentos e elementos circenses concretos ganham outros sentidos, o mesmo ocorre aos abstratos. Sentimentos associados ao risco do picadeiro adquirem força de narrativa, e mesmo um rechaçado das expressões de acrobatas e equilibristas, como o medo, evidencia-se na expressão da personagem feminina. Assim como a confiança, tornam-se chaves-mestras na condução do destino amoroso.
O erro, então, assume igualmente uma significação dramatúrgica: a ruptura da sincronia – da sintonia ou ainda da confiança – entre o casal, expressa no olhar frustrado da mulher. Tanto é assim que a cena mais impressionante tecnicamente, a virtuose dos dois artistas cujos corpos se entrelaçam e disputam espaço no alto do trapézio, onde a rivalidade do casal se condensa na disputa pelas folhas de um jornal, um erro trivial, inesperado, prosaico, encerra a relação (e o espetáculo) sem maiores explicações. Tal como no poema de Prévert.