Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena (*)
Há algo de espanto em um primeiro momento. Sensação logo transformada em beleza a ser admirada. O que antes poderia soar como piedade cede lugar à comunhão, ao encontro com o outro, à celebração. A imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência, desviando o olhar da perda para a multiplicação dos corpos em cena. Juntos, performers e espectadores atravessam a fronteira da deficiência e da individualidade para chegarem ao território da eficiência só possível de ser alcançada na complementaridade. Movimento compartilhado entre todas as partes.
Fotos de Manon Valentin |
“Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, programa de dois espetáculos apresentado pela companhia Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA), da França, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. O fato de um dos bailarinos ter perdido uma de suas pernas não é ignorado pelo trabalho (nem pelo público), mas também não é seu ponto principal ou final. É a partir desta ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos.
Tendo como ponto de partida um mote até mesmo banal, a relação de amor e ódio que cerca um triângulo amoroso, nasce uma dramaturgia corporal vigorosa, em que o arquétipo da perfeição do casal, em sua caminhada nupcial, é desestabilizada por um terceiro elemento, uma espécie de intruso que insiste em se fazer presente. Enquanto um a faz girar, o outro a faz flutuar, num jogo de oposição que os transforma assim em duplos complementares, que só se definem e existem na comparação com o outro.
Desestabilizar parece ser um verbo que permeia ambos os espetáculos: reverter expectativas, romper convenções, criar outros olhares ainda não experimentados para o que se entende por (e no) corpo.
Em Ali, o trio se desfaz e cede lugar a um dueto. Numa espécie de dança-duelo, Mathurin Bolze e Hedi Thabet se perseguem, se chocam, se debatem, se conectam, redescobrem seus próprios corpos. O que antes era falta, torna-se soma. A presença constante de uma ausência. Parte-se das muletas como apoio e suporte para transformá-las em trampolins para grandes saltos, como extensões dos próprios corpos, que, mais que objetos, tornam-se também matéria, corpo, carne, membro.
Uma perna a menos se transforma em várias pernas a mais, como num milagre da multiplicação ou uma brincadeira de criança. São partes de um todo que só se constitui na hibridização desses dos corpos performáticos que dividem a cena, num movimento constante de mutação de formas, imagens, dinâmicas, perspectivas.
A quase ausência de elementos no palco (apenas um lustre e cadeiras) ressalta ainda mais o foco na escrita que nasce do corpo e para ele retorna. É na extrema fisicalidade que o trabalho encontra seu apoio. Assim como os elementos aos quais a própria companhia recorre para construir sua poética cênica, que agrega principalmente circo, dança e teatro, os corpos dos performers também assumem um caráter híbrido, estilhaçado, expandido, ampliado. Uma outra anatomia possível se configura no encontro e na metamorfose entre eles.
O virtuosismo em ambos os espetáculos deixa de ser mera exibição das habilidades técnicas dos bailarinos, embora estas sejam incontestáveis, para se tornar também possibilidade de reinvenção e reconfiguração corporal, na criação de formas não mais somente humanas, mas praticamente mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem. Ao construir um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio, o grupo francês MPTA reconstrói a própria ideia de humano na contemporaneidade, quando o apoio solitário parece não ser mais uma alternativa possível.
(*) Este texto integra as ações do Coletivo de Criticos na MITsp 2014 – Mostra Internacional de Teatro