:: Por Soraya Belusi ::
Em sua fala no encontro Olhares, do Festival Estudantil de Teatro (Feto), a diretora Andréia Pires, que assina a encenação de Vagabundos, do Ceará, cita um artigo de Eleonora Fabião no qual a artista e pesquisadora associa à performance os verbos desviar e vagabundear. A mesma pesquisadora, em uma entrevista, afirma que, se definir a performance parece uma tarefa até mesmo inviável ou desnecessária – sendo que esta tem como natureza justamente suspender certezas sobre gêneros, forma e a própria noção de arte –, há, porém, fatores comuns entre peças de performance, das quais se sobressaem a ênfase no corpo como tema e matéria.
Eleonora continua: “Me restrinjo a destacar algumas tendências gerais: o desmonte de mecânicas clássicas do espetáculo, a desconstrução da representação, o desinteresse pela ficção, a investigação dos limites entre arte e não-arte, a investigação das capacidades psicofísicas do performer, a criação de dramaturgias pessoais e/ou autobiográficas, a ênfase nas políticas de identidade e em discussões políticas em geral através do corpo e as experimentações em torno das qualidades de presença do espectador”[1].
Vagabundos – trabalho nascido em uma disciplina do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Ceará em 2013 – tendo tais formulações sendo trabalhadas em sua criação, carrega para sua obra-processual os rastros dos conceitos e práticas que lhe inspiraram, tornando a premissa de vagabundear uma espécie de manifesto escrito no corpo e com o corpo. Corpos múltiplos, distintos, diversos, identidades plurais que não se anulam em busca de uma unidade. As diferenças são mantidas e tornam-se linguagem: de estrutura física, de movimentação, de forma de enunciação, etc…
Além da base teórica ligada aos estudos do corpo e da performance art, a diretora do espetáculo cearense citou ainda o diálogo com as manifestações populares ocorridas em junho de 2013 (mesmo período de criação da obra) e com as demandas sociais dos movimentos representados nesses atos. A faceta mais visível desses traços de diálogo com o real se dá em cenas como a narração de um gol, em que se coloca em jogo política, futebol e poder, culminando numa imagem de “manifestantes” mascarados. Uma referência menos explícita que me parece caber para pensar a estrutura do espetáculo e que também se conecta a esses atos políticos é a utilização formalizada do que poderia chamar como “micro flash mobs”, fragmentos que se constroem e se diluem momentos depois, retornando à formação inicial e logo gerando novos desdobramentos coletivos.
O Flash mob pode ser definido como aglomerações instantâneas de pessoas em certo lugar para realizar determinada ação inusitada previamente combinada, estas se dispersando tão rapidamente quanto se reuniram. Assim como num flash mob, Vagabundos, pela quantidade de performers que agrega – cerca de 20 pessoas envolvidas na performance –, traz para a cena a forma de um aglomerado, de uma massa de corpos e indivíduos, que se fundem enquanto multidão, mas que se distinguem enquanto sujeitos. Mais que uma possibilidade formal, o flash mob como estrutura, por sua ligação histórica à ideia de ocupação do espaço e de aglomeração de pessoas, denota também sua faceta política de ato performativo.
A própria noção de dança, e consequentemente de arte, é colocada em suspensão à medida que as noções de coreografia, beleza, virtuose, habilidade técnica, precisão, acabamento, entre tantos outros adotados para se refletir sobre a dança, são desestabilizados pela obra, na qual o rigor e formalização nesses quesitos não é o ponto fundamental.
Pensando no “espírito de uma época”, como citou o diretor Rodrigo Campos também no encontro Olhares, Vagabundos me remeteu – “pela irreverência e pela atitude contra um certo ‘encaretamento’”, como afirmou Campos – à atmosfera que imagino ter sido – e que confirmo em documentários, relatos e reportagens – vivida nos tempos do Dzi Croquettes, no Rio de Janeiro, ou do Vivencial Diversiones, em Recife; ambos grupos nascidos sob a verve do desbunde[2], do desvio e da vagabundagem – no sentido que nos apresenta Eleonora.
[1] FABIÃO, Eleonora. “Definir Performance é um falso problema”. Entrevista concedida ao jornal Diário do Nordeste, em 09.07.2009. Acessado em 22/10/2014. http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/definir-performance-e-um-falso-problema-1.281367
[2] O início de 1972 ficou conhecido como “o verão do desbunde”, termo originado do verbo desbundar, que deu origem ainda ao termo “juventude desbundada”. Segundo os dicionários, desbundar significa “perder o autodomínio, enlouquecer, loucura, desvario”.