Crítica a partir do solo “Espécie”, de Igor Leal (BH)
— por Clóvis Domingos —
“A condição precária da vida nos impõe uma obrigação. Devemos nos perguntar em que condições torna-se possível apreender uma vida, ou um conjunto de vidas, como precária, e em que condições isso se torna menos possível ou mesmo impossível. É claro, não se deduz daí que se alguém apreende uma vida como precária decidirá protegê-la ou garantir as condições para sua sobrevivência e prosperidade. Contudo, quero demonstrar que, se queremos ampliar as reivindicações sociais e políticas sobre os direitos à proteção e o exercício ao direito à sobrevivência e à prosperidade, temos antes que nos apoiar em uma nova ontologia corporal que implique repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social”.
(Judith Butler. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?)
“Espécie” se apresenta como um trabalho híbrido e com muitas possibilidades de leitura. Transita entre performance, instalação e teatro. Uma montagem ou “montação performativa”, cujo corpo em cena articula sexualidade, desejo e política numa estética declaradamente queer. Uma experiência que desmonta os binarismos de gênero e celebra, com alegria, suavidade e força, a possibilidade de se reinventar um corpo com suas plasticidades, entrâncias e passagens. Um ritual que, entre silêncio, presença física e sonoridades espaciais, instaura sensações diversas e produz imagens delicadas e ao mesmo tempo estranhas. “Espécie” é uma espécie de manifestação político-performativa que nos dificulta encontrar uma classificação fechada. Entre vazios e plenos, escrevo esse texto ainda afetado pela experiência vivida.
A nudez do artista, mais do que física, é a nudez daquilo que escapa às normatizações e, entre vulnerabilidade e força, também nos expõe e revela. O trabalho apresenta um corpo e uma subjetividade em sua expressão e intimidade únicas, alternando delicadeza, pós-pornografia e espiritualidade. Um ritual para limpar nossos preconceitos e nossas retinas muitas vezes viciadas e condicionadas a olhar o que lá não existe, ou o que para além dali está. Ou mais: o que foi significado e naturalizado como tal.
O que é essa espécie chamada ser humano? O que é um corpo? Quais textos e discursos se escrevem e se inscrevem em nossa pele? Como limpar essas letras, marcas e tatuagens que nos impõem maneiras de estar, amar, viver e sentir? Que bicho somos nós? Qual é o preço de sermos condicionados e colonizados por uma cultura heteronormativa e judaico-cristã? Como se livrar dessa violência que engessa nossos desejos e se permitir deslizar por camadas mais instáveis, porosas e menos rígidas em nosso campo sexual?
Sim, o corpo é água, rio, mar! O corpo flui, molda, brinca em suas plasticidades infinitas. Somos corpo. E através de nossos corpos fazemos cotidianamente política. Seja em casa, na rua, na escola, no trabalho, na igreja, na cama ou no espaço cênico. “Espécie” faz política biófila, isto é, celebra a vastidão da vida. Sexualidade aqui se experimenta, não mais se representa. E três buracos e orifícios do corpo humano fazem política amorosa e disruptiva em “Espécie”: o ânus, a boca e o ouvido. Com um “dildo” (objeto que imita um pênis com o intuito de ser usado para provocar estímulos sexuais através do contato, fantasia ou penetração oral, anal ou vaginal) alongado por uma forma de cauda no interior de seu ânus, o performer realiza seu manifesto contrasexual e contra-hegemônico, provocando e tensionando essa região tão relegada e marginalizada por se encontrar restrita às imagens e discursos relacionados a excremento, baixo-ventre, indignidade, passividade, abjeção, crime e pecado.
Mas em “Espécie”, numa arquitetura política do corpo, o ânus ganha primeiro plano. Para os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, esse foi o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social. Por esse orifício não se reproduz biologicamente outra vida. No trabalho cênico de Igor Leal, tais “políticas anais” (expressão utilizada por autores como Javier Sáez e Sejo Carrascosa) ganham visibilidade pública e geram minimamente três “ideias-imagens”: temos o objeto capaz de provocar prazer e excitação sexual; o rabo animal que nos remete à nossa ancestralidade e corpo instintivo; e a rédea, uma longa corda que nos prende e dificulta caminhar, questionar, liberar, gozar com nosso corpo.
Nessa última e terceira possibilidade de leitura, haveria também pistas para se pensar e discutir as rédeas religiosas e conservadoras que, aprisionadas e focadas no que fazemos com nossos orifícios, insistem em ditar normas, leis e proibições. Nunca fomos tão vigiados em nossas práticas afetivo-sexuais como atualmente, daí o movimento insurgente de se afirmar “meu cu é laico”. Um Estado que legisla sobre a vagina das mulheres, que estimula a virilidade fálica dos homens (o que alimenta o exercício constante do machismo), que defende e legitima modelos familiares conservadores e burgueses, no mínimo, é um Estado fascista.
Corpo e precariedade. “Espécie” toca em todas essas questões, mas não de forma panfletária, mas assumidamente poética e performativa. É mais imagem do que palavra, provoca mais sensação do que elaboração intelectual. É espesso. Fala menos sobre espécie, e mais como espécie. O performer integra os espectadores-participantes em seu ritual de liberação e afirmação de um corpo plástico e insubordinado, quase que nos convocando a uma ação coletiva, numa luta e resistência às normatizações e violências.
Mesmo se tratando de uma temática tabu, difícil e delicada de ser abordada, o artista e toda a equipe de criação o fazem de forma responsável, não priorizando a agressão ou o choque (o que também seria um direito e uma escolha), mas numa política pelo encontro e pela alegria. Não há ninguém a ser convencido ou convertido a nada ou a nenhum tipo de orientação sexual. O que está em jogo é a possibilidade do corpo se afirmar e se apresentar como território de invenções e subversões. Até porque, perigosa e insistentemente, o modo como nos relacionamos com nossos corpos e com os corpos dos outros, em qualquer tipo de relação (da social à sexual), obedece a uma pedagogia dos corpos que pouco questionamos ou ousamos desobedecer.
A boca e o ouvido, também furos e frestas existentes em nossa corporrealidade, também se acionam em “Espécie” como possibilidades políticas de enunciação e penetração nesses espaços. Possibilidade de se produzir novas discursividades afetivo-sexuais. Experimentar ser penetrado por aquilo que nos amedronta, resiste, nos desterritorializa, nos atinge na carne. Sexualidade expandida como cena expandida.
“Espécie” são espécies. Há um momento em que a longa cauda tem uma parte enrolada no pescoço do artista, abrindo novas proposições imagéticas: o cabresto (a nos conduzir como gado que segue as normas vigentes), a forca (que a mim remete à morte e extermínio daqueles que ousam viver seu desejo, numa realidade cotidiana de um Brasil que mata pessoas transgêneras a cada 28 horas) e um “colar sagrado”, revestindo e fortalecendo o chacra da garganta, lugar que expressa e anuncia as possibilidades do Ser. Estamos atualmente transitando por essas três camadas: o alienado, o enforcado (ou silenciado) e o “falante” ou enunciador de sua subjetividade frente às violências sociais.
Destaco nessa (des)montagem de nossos estereótipos, a iluminação de Jésus Lataliza e Preto Amparo, ora nos cegando a visão, ora obscurecendo o corpo do atuante, sempre a provocar nosso olhar e percepção. Além de alguns momentos nos quais o corpo do performer se torna fragmento ou matéria bruta, quase que desumanizado, e mais, nos desabituando de olhar um corpo nu. Dessa forma, o jogo dialógico entre luz e cena atua como uma veste ou lâmina que, ao cobrir e incidir sobre determinadas partes do corpo do performer, o transforma, o transveste, o retalha, o ultrapassa e embaralha nosso olhar quase sempre totalitário. A trilha sonora original de Barulhista também colabora significativamente para que esse ritual se efetue e nos envolva. Uma sonoridade pontual em momentos chaves do evento cênico, cujos ruídos evocam desde o horror de se estar vivo e refém de tantos discursos e coerções, como também as possibilidades espirituais e concretas de se libertar de tais amarras.
A parceria nas pesquisas e na militância do artista com os coletivos e projetos artísticos Beijo no Seu Preconceito e O Que Você Queer garante a força de um trabalho contundente e bem cuidado. A dramaturgia é assinada por Ana Luísa Santos, importante referência nos debates queers em Belo Horizonte, além de artista performática e responsável por produzir significativos eventos na área da arte da performance.
Igor Leal, em sua “dramaturgia do movimento”, tem uma presença firme e ao mesmo tempo doce. Sua movimentação apresenta os desenhos necessários para se evidenciar que corpo é mutação e invenção constantes, e, ao mesmo tempo, sua calma em momentos estáticos e mais lentos aponta para uma atuação quase oriental e meditativa. Não há sobreposição de atividade nem unicamente passividade, há impermanência e um fluxo corporal orgânico. Um corpo camaleônico que se oferece como imanência política, discurso como dissenso, festividade, prazer e devoração. O artista não tem medo ou receio de olhar e interagir intensamente com o público nesse pacto imagético e sensorial. Ele não desconsidera em momento nenhum que estamos atados a ele e à sua “encenação da pele” de uma espécie, que apenas quer ter o direito de expressar diferentes formas de se estar no mundo.
*Espetáculo visto em 01/06/2017 na FUNARTE-MG.
Ficha técnica:
Performance: Igor Leal
Dramaturgia: Ana Luisa Santos
Direção: Fernanda Branco Polse
Codireção: Benjamin Abras
Cenografia e objetos cênicos: Bruno Lelis e Fernanda Branco Polse
Figurino: Ana Luisa Santos
Iluminação: JésusLataliza e Preto Amparo
Trilha sonora original: Barulhista
Operador de som: Will Soares
Design gráfico: Adriana Januário e Fernanda Branco Polse
Gestão e produção cultural: Bruno Lelis
Realização: Beijo no seu Preconceito e O que você Queer