Texto produzido como exercício no Laboratório de Crítica de Dança ministrado por Flávia Couto (Zona Tórrida/BA), a quem agradeço a leitura, as sugestões e provocações para a escrita deste ensaio.
Agradeço também ao dramaturgo Anderson Feliciano por me apresentar os artistas visuais cujas imagens de algumas obras dialogam com meu texto.
– por Clóvis Domingos –
Imagem da capa desta postagem: (Outros) Fundamentos da artista Aline Motta
Com direção de Ana Paula Mathias, a série Nós Negros (disponível no canal do SescTV) é composta por dez vídeos artísticos que revelam as singularidades de criadores negros e negras, através da exposição de suas narrativas poéticas focadas na história e experiência particular de cada corpo em suas relações com o cotidiano, com o universo das artes e com a produção de pensamento crítico.
Nós Negros é fruto da residência artística PlusAfroT, um programa criado pelo coreógrafo e articulador Mário Lopes e pela curadora Diane Lima. Tendo a diversidade como marca principal, em cada vídeo de curta duração é possível se aproximar de questões específicas ao mesmo tempo que, pelo conjunto reunido, temos uma dimensão coletiva (esses “nós”) que se faz presente. Neste texto, me debruço sobre a vídeo-dança apresentada por Mário Lopes, coreógrafo e gestor cultural nascido em São Paulo e que vive e trabalha na Europa.
No vídeo, Lopes discute a condição do corpo entre as fronteiras geográficas e culturais, a experiência de ser estrangeiro; a importância de se dominar os códigos vigentes; o ato de se deslocar por diferentes espaços e, assim, também mover conceitos como margem e centro; a recusa da subalternidade; e a insistência de seguir abrindo caminhos. Sua dança sugere luta e resistência, uma rota percorrida entre a sala da Casa Grande rumo ao encontro com a vastidão do mundo. Com movimentos e giros em suas ondulações marcadas pelos passos firmes e decididos, revirando a terra seca e árida do continente europeu, ele levanta a poeira da História e risca seu ponto: presença negra criando rupturas no indigno solo da chamada globalização. Junto à natureza exuberante o artista parece se conectar às forças ancestrais num jogo de memória e circularidade.
Mas o deslocamento aqui, agora, é desejo e decisão. Não mais condenação a uma existência e à errância diaspórica como se deu a partir do tráfico negreiro e da política escravista sedimentados pelas estratégias senhoriais da Coroa Portuguesa nas colônias brasileiras (é preciso salientar que de todas as Américas, o Brasil foi a região com o maior número de escravizados). A violência dessas imigrações impostas aos povos africanos fez da diáspora uma experiência traumática (através de castigos, exploração, sofrimentos, separações de familiares etc.) e uma exigência de recomposição identitária (pela necessidade do aprendizado de outras formas de ser, estar, pensar e agir no mundo). Ainda hoje o povo preto vive as dores dessas feridas que custam a cicatrizar.
Voltando ao trabalho, Mário utiliza um fone de ouvido – e me pergunto: quais seriam os sons e canções escutados pelo artista durante sua travessia? Impossível saber. É como se ele ouvisse a si mesmo, seus sonhos e anseios, a voz de seu povo, e não se perdesse frente aos discursos do mundo branco colonial. Assim, ele pode se vestir e se despir das roupagens da velha civilização, uma vez que seu corpo é e sempre será centro, axé, força e motor de atravessamentos e transformações. Gesto afrocentrado ao utilizar as armaduras da cultura dominante como estratégia de sobrevivência e subversão.
“Viver é passar de um espaço a outro fazendo o possível para não se machucar”
Imagem: Rota de fuga. Artista Tiago Sant’Ana. Crédito: Felipe Berndt
No episódio de Mário Lopes, o que presenciamos é a recusa dos apagamentos históricos pela ressignificação do movimento diaspórico do corpo negro num retorno ao Oceano Atlântico agora numa outra condição. Nada o detém ou paralisa. Seu corpo nunca para. Entre aproximações e distanciamentos realizados pelas lentes da câmera, a edição e montagem do vídeo acertam ao seguir o caminhar determinado do artista captando seus deslizamentos corporais, sensoriais, conceituais e afetivos.
Sua ginga e seu bailado se configuram como “poéticas transatlânticas”. Impossível não recordar aqui do trabalho da bailarina mineira Ana Pi em seu refazimento de rotas no encontro com corporeidades negras de outros continentes. Posso citar o vídeo Nós somos o centro (2017) e o documentário NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (2018). Tanto Ana quanto Mário são artistas cujas cenas multitudinárias (MARQUEZ, 2021)[1] e danças especulativas reposicionam, combatem e desarranjam os discursos geopolíticos ao produzir encruzilhadas, ao mesmo tempo, que agenciam espaços de reconhecimento. Aqui, um “eu negro” se junta a um “nós negros” e buscam provocar rupturas, insurreições e sacudimentos. Um “eu – nós” aqui é luta e resistência. Deslocar pode ser criar conflitos e também tecer alianças.
Em tempos de reclusão forçada devido à pandemia, a série nos convida a gerar novas conexões e inquietações a partir do “isolamento criativo” experimentado pelos artistas participantes do projeto. E mais, nos indaga: como fabular um outro mundo? Que existências podem transitar pelos espaços e quais se encontram impedidas? Como conjugar a ficção, a poesia e o documental nessas produções atuais? Como a dança e o audiovisual conversam nesses sistemas híbridos de criação? São questões mobilizadoras e desafiantes como essas que inserem o programa Nós Negros e o trabalho de Mário Lopes no amplo e controvertido universo da arte contemporânea (também cercado por territórios, feudos e lugares de privilégio) em diálogo e tensão com os debates do agora, operando necessárias e urgentes revisões históricas e sociais, mas com a flecha apontada para o futuro.
[1] Texto “Estamos no Futuro, com Ana Pi” escrito por Renata Marquez para a REVISTA BDMG’cultural v.04.