* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica do espetáculo Cabaré Coragem, do Grupo Galpão.
Foto da capa: Mateus Lustosa
– por Clóvis Domingos –
Derruba uma floresta, esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
– Precisa de um motorista.
O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
– Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito
– Sabe pensar.
(Bertolt Brecht. O vosso tanque, General, é um carro forte).
Em suas recentes criações, o Grupo Galpão se aventurou por experimentações performativas mais viscerais e radicais (como nos espetáculos Nós e Outros, trabalhos criados em parceria com o diretor Márcio Abreu), que abordavam e metaforizavam não somente as relações e tensões internas do grupo, bem como o atual cenário caótico da política brasileira. Agora, com o novo trabalho, Cabaré Coragem, busca inspiração na obra de Bertolt Brecht e mistura poesia, manifesto, humor e música.
Esse cabaré contemporâneo, com seu show de teatro de variedades e números circenses, nos é apresentado por uma trupe de artistas envelhecidos e figuras marginalizadas que, mesmo num contexto de pobreza e decadência, insistem no fazer artístico como modo de resistência e criação de um outro mundo possível. Mas só conseguimos compreender essa construção dramatúrgica (a temática da exploração a que são submetidos) com o desenrolar dos fatos e situações vivenciadas. Os quadros e cenas fragmentados revelam a estrutura épica da montagem, que se vale da perspectiva brechtiana na qual a função do teatro seria aliar diversão e reflexão crítica. Recuperando aqui o poema que abre esse texto: um homem pode ser muito útil, pode obedecer, pode concordar, mas pensar é o seu melhor defeito pois traz possibilidades de ação e transformação concretas.
Em Cabaré Coragem a atmosfera de festa e celebração é proposta desde a entrada da plateia no espaço do Cine Horto com o funcionamento de um bar. Ali já se ensaia um convite à descontração, ao burburinho, a um certo tipo de relaxamento e entendimento do lugar que nós, espectadores, ocupamos e que assistiremos a uma apresentação de uma obra de arte. Diria mais: participaremos de um espetáculo-jogo. Nesse trabalho a configuração espacial se divide entre duas possibilidades: sentar nas arquibancadas ou ocupar as mesas posicionadas no mesmo piso do palco. As personagens nos recebem, oferecem bebida e nos contam sobre as dificuldades de trabalhar ali naquele “buraco quente” da Madame (Teuda Bara faz a proprietária do cabaré).
Cabaré Coragem traz os artistas do Grupo Galpão (Júlio Maciel na direção; e em cena: Antonio Edson, Lydia del Picchia, Simone Ordones, Teuda Bara, Eduardo Moreira, Inês Peixoto e o músico convidado, Luiz Rocha) com primorosas e delicadas atuações, essas, espalhadas em momentos de ironia, paródia, balada e lirismo. Tem-se um conjunto de ingredientes necessários para instigar os espectadores na efetuação de uma crítica distanciada e bem-humorada a partir da força da fábula. O que inicialmente pode parecer estar longe, logo depois se revela bem perto, o familiar também se torna estranho, a incerteza é o motor que nos move e inquieta. Como afirma Lydia em determinado momento, citando Brecht: “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.
Com Cabaré Coragem o Grupo Galpão retorna à sua veia popular e mambembe (o domínio vocal, corporal e musical só confirmam seu amadurecimento técnico e artístico com o passar do tempo), retira o verniz e sisudez que muitas vezes encobrem o teatro de Brecht, e com esse espetáculo celebram o reencontro presencial com seu público, falam da coragem de permanecer, de lutar, de fazer arte e educação no Brasil, de reinvenção, de sobrevivência depois de uma longa crise sanitária (a pandemia) e do horror de um governo fascista.
Foto: Bruna Brandão
Dentre os diversos quadros apresentados no roteiro-cardápio do cabaré, destaco duas cenas: a do ventríloquo com sua boneca e o número de acrobacia. Inês Peixoto é uma “bonequinha alegre” desobediente e revoltada com seu dono (interpretado por Eduardo Moreira) quando toma consciência de estar sendo literalmente “manipulada”. A dupla utiliza o texto Se os tubarões fossem homens, presente na obra As histórias do Sr. Keuner, também do Brecht. Esse pequeno conto, marcado pela ironia e jogos de sentidos, nos envolve em reflexões sobre as relações de poder e nossa organização social. Rimos ao identificar o impulso destruidor do tubarão que existe nos governantes injustos e patrões desonestos, como também em cada um de nós. Uma cena que nos faz pensar nas diversas manipulações que sofremos cotidianamente. Mas a maior potencialidade dessa cena, além da natureza perversa da figura infantil (a delicada boneca), é nossa surpresa com a “virada de posição” entre os personagens, o que rende muitas risadas da plateia e reafirma a máxima brechtiana de que a mudança é sempre possível.
Já com a cena acrobática, feita por Eduardo e Toninho, somos convocados a visitar os limites e as expansões das paisagens corporais de dois homens mais velhos diante do desafio imposto por um número de arte circense que prima pelo virtuosismo, equilíbrio, precisão, concentração e certa dose de perigo. Mas numa subversão poética, o que parece “pequeno” se dilata e o que nos emociona é o que não se cumpre enquanto “grandioso” ou extraordinário, mas o que se promete, se prenuncia, e de alguma forma ali acontece pelo nosso olhar generoso que “completa a falta”, instaurando-nos no território do humano. A fragilidade ganha força, não se trata mais do grande salto, mas da beleza do pequeno passo. E aplaudimos aliviados por reconhecer ali também a liberdade de podermos abandonar o imperativo de sermos super-homens ou máquinas eficientes. O espaço do teatro sempre acolhe a iminência do fracasso e da catástrofe.
O espetáculo tem dois atos e somente no último é que a personagem Madame justifica sua exploração dos trabalhadores do cabaré, ao apresentar-se como uma “Mãe Coragem” (nome da famosa peça de Brecht) por conseguir sobreviver em meio a uma guerra e por causa dela. Esse “fio dramatúrgico” fica solto e funciona mais como um comentário alusivo à obra do dramaturgo alemão, parecendo forçar uma espécie de aproximação, mas que surge descontextualizada do texto original. Se considerarmos a engenhosa complexidade dramatúrgica proposta por Brecht para abordar as contradições econômicas e sociais vividas numa experiência de guerra, no caso do trabalho do Grupo Galpão, seria ainda preciso “costurar” com mais tempo a compreensão de que Madame também faz parte da decadência daquele mesmo universo e não é apenas ou exclusivamente uma mulher abastada que oprime e enriquece à custa dos pobres artistas. Caso contrário, a referência à Mãe Coragem soa abrupta e repentina.
Um dos maiores desafios dessa montagem estaria na relação a ser estabelecida entre atores e público, uma vez que a opção pela linguagem do cabaré colocaria o trabalho numa instigante e interessante zona de risco e instabilidade. Mas não estará esse Cabaré Coragem do Grupo Galpão um mocinho muito bem-comportado? Haveriam brechas para um pouco mais de imprevisibilidade e bagunça? Esses corpos tão vigorosos em cena não topariam brincar com um pouquinho mais de “safadeza” e malícia junto à plateia? Após anos tão difíceis de vigente conservadorismo moral e religioso e de censura às artes, não seria também político um gesto e discurso mais eróticos e provocadores dos corpos?
Encontrando abrigo na musicalidade e na poesia, Cabaré Coragem do Grupo Galpão se configura como uma viagem sonora e visual que diverte, provoca e nos convoca ao exercício constante da dúvida. Um rito festejante, um reencontro vivo e alegre com seu público, uma ode à bravura e à coragem, enfim, um elogio à transgressão e ensaio para a mudança.
FICHA TÉCNICA
Direção: Júlio Maciel
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara.
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor Assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de Experimentos Cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Comunicação: Fernando Dornas
Assistente de comunicação: Izabella Bontempo
Assessoria de Imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Idylla Silmarovi
Produção Executiva: Beatriz Radicchi
Direção de Produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão