Por Soraya Belusi (*)
Para experimentar, é preciso ir além do conhecido, do confortável e do familiar. No sentido estrito, experimento carrega no dicionário a noção de ensaio científico para a verificação de fatos definidos, experiência ou experimentação. Em arte, tal conceito nos leva a trazer essa noção para a instalação de novos mundos, deslocamentos de linguagem, outras proposições estéticas. Mas, em seus dois trabalhos apresentados na programação do Fentepp, a Trupe do Experimento, do Rio de Janeiro, parece contradizer essa pretensão ao se debruçar justamente sobre os formatos já padronizados.
“O Que Podemos Contar” (Foto Fernando Martinez) |
A cena contemporânea é rica em experiências que problematizam as convenções teatrais já assimiladas, propondo pesquisas acerca da linguagem e configurações outras da ideia de representação, construção do personagem, dramaturgia. Também não são poucos os exemplos que radicalizam a perspectiva experimental no trabalho do ator, na relação com a plateia, com o espaço ou com a própria noção de arte. Não é este o referencial que parece nortear “O Que Podemos Contar” ou em “Sonho de Uma Noite de Verão – A Magia de Shakespeare para Todas as Idades”, ambos do grupo carioca. É em solo firme que o coletivo parece querer andar.
Em “O Que Podemos Contar”, são apresentados dois personagens, Nina e o homem Sem História que abandonou suas lembranças no passado e só pensa no futuro. Ao ter seu caminho cruzado pela menina, porém, ele retoma o desejo de voltar às suas memórias de infância. A direção, de Marco dos Anjos, recorre a ícones do imaginário infantil – como a boneca de pano, boneco de corda e o palhaço – para que os personagens da história ganhem vida. A peça apresenta a estrutura já tradicional de mesclar narração, representação e números musicais – as canções das duas montagens também são assinadas competentemente por dos Anjos. A dramaturgia se sustenta numa estrutura previsível, em que cada objeto encontrado na mala detona uma memória que é representada em flashback.
A atuação segue o registro insiste-se em repetir no teatro feito para crianças, pautado excessivamente na máscara facial e, em alguns momentos, na exacerbação do personagem-tipo de forma ilustrativa. O carisma, porém, da personagem Nina supera tais obstáculos para possibilitar a empatia do público infantil. O narrador aparece apenas como uma espécie de transmissor de mensagens morais – do tipo “leia para os filhos”, “cada dia a gente vive uma história”, etc – e não consegue atingir os predicados nem de contador da história a ser representada, nem de comentador da cena, tendo sua função um tanto injustificada a não ser pela cena final (da entrega do boneco).
“Sonho de uma Noite de Verão” (foto de Paulo Teotônio) |
Já no início de “Sonho de uma Noite de Verão”, uma promessa de pesquisa de linguagem se apresentava: com trajes ocre, os atores recebiam o público ao som de versões para canções de domínio popular, executadas com violão, flauta, tambores e pandeiro. Numa espécie de prólogo, ao apresentar o universo de Shakespeare, o sotaque nordestino invade a cena, como se a encenação propusesse haver um diálogo com a cultura brasileira. Mas isso não se esparrama (em consonância ou divergência) pelos outros elementos, exceto nas canções, tornando-se apenas um elemento fácil em busca do riso (como se as confusões da trama do bardo não fossem cômicas o suficiente e fosse preciso carregar a tinta).
A fisicalidade ancorada no trabalho corporal dos atores, aqui, porém, gera um vigor à atuação e possibilita mais unidade ao conjunto do elenco, que se demonstra potencialmente com recursos, além de apontar para uma possibilidade de assinatura, identidade do grupo. É também o caso de alguns elementos recorrentes nestas duas produções da trupe – como a figura do narrador, a potência das canções, a busca pela comicidade, a teatralidade e fisicalidade da cena (principalmente na versão para a obra de Shakespeare) – com os quais ela pode, de fato, fazer seu experimento.