“Contudo, se o teatro é a arte do provisório, daquilo que se esvai a cada noite, sem a possibilidade de recuperação idêntica e exata à da noite anterior, não seria o processo de ensaio, espaço por excelência da precariedade, um espelho mais fiel da arte teatral? O próprio espetáculo é sempre um devir, uma experiência que, à revelia de nós mesmos, nunca se completa inteiramente. E, por mais exigentes que sejamos, será sempre inacabado. O desejo do ponto final parece não passar de uma utopia – duramente buscada, mas nunca atingida, já que ele vai contra a própria natureza do teatro”. (Antonio Araújo, “A Gênese da Vertigem”)
Por Soraya Belusi (*)
Não poderia ter começado este texto de outro jeito. Até podia, na verdade, mas hoje decidi começar assim, de improviso. Pode até ser que não seja o ideal, que algum erro fique exposto, mas não tem problema, afinal, é só a primeira tentativa. Se, ainda assim, ao fim da leitura, esta análise soar um tanto inacabada, em uma próxima oportunidade tentarei organizar melhor o pensamento e preencher as lacunas. Ou não. Fazer uma crítica, assim como uma peça de teatro, não é nada fácil. Mas, para algumas pessoas, viver também não é, nos lembraria uma das atrizes de “Vazio É o que Não Falta, Miranda”. E confesso que não tenho a menor ideia de como isso irá terminar.
Fotos Carolina Calcavecchia |
Improviso, erro, tentativa, inacabado e imprevisibilidade são algumas palavras-chave no jogo que Diogo Liberano e o Teatro Inominável propõem na sua versão para Esperando Godot, de Samuel Beckett. Através da negação à obra do autor irlandês, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, o espetáculo lança um olhar sobre a sua própria condição como objeto artístico. Ao falar de arte, porém, o discurso retorna para a vida. E, mesmo desistindo de esperar, o coletivo se encontra com Beckett e seu Godot.
“Vazio É o que Não Falta, Miranda” efetua uma espécie de “processualização do espetáculo”, realizando um transbordamento dos procedimentos do processo de criação como elementos da dramaturgia e da encenação e, com isso, ressaltando, como afirma a citação de Araújo, que o resultado, o ponto final, a perfeição, é apenas uma utopia nunca atingida – assim como Godot, ou Miranda, ela nunca chegará. Ou ainda, como diz Josette Fèral, a estreia do espetáculo “não constitui a morte, como muitos pensam, senão um nascimento”.
Ao assumir o processual como elemento de sua natureza, “Vazio É o que Não falta Miranda” realiza, ao mesmo tempo, um jogo que inclui referências a diversas esferas do fazer e do pensamento teatral do século XX até aqui: o (des)respeito ao autor, o lugar do encenador e do ator (ambos criadores da cena), a fragmentação da dramaturgia, a quebra da ilusão, a materialidade da cena, a relação entre ator e personagem e a cocriação do espectador.
As proeminências de aspectos do processo aparecem já no espaço cênico e se revela no desenho que remete ao ambiente de trabalho do grupo, com lâmpadas fluorescentes, uma mesa em declive, cadeiras improvisadas, entre elas um engradado de bebidas, mesa de operação ao lado, fita crepe no chão.
Esperando Godot é mesmo uma bíblia entre os apaixonados por teatro. Assim como Samuel Beckett é um semi-Deus. Essa percepção é usada (e se comprova) logo em uma das primeiras cenas, em que uma das atrizes começa a falar o nome da peça e do autor e pede que os espectadores completem. A resposta vem em uníssono no teatro. O embate entre as ideias contidas no texto do irlandês e o que pensam os artistas-criadores, ainda no processo de “estudo de mesa”, se materializa em cena com a leitura da sinopse e a revolta posterior da atriz.
O enterro da obra é a autopermissão (e o pacto com o espectador) para desmoronar os alicerces e abrir espaço para uma nova arquitetura que, embora negando a primeira, ainda traz em si seus rastros: no jogo de palavras, na repetição que altera os sentidos, no humor clownesco, na relação com o tempo e com a espera. Não é apenas na encenação de uma das cenas do texto original que Didi, Gogo, Lucky e Pozzo se fazem presente. As citações ao original permeiam não só a construção dramatúrgica, em referências explícitas à estrutura da linguagem, como também, de maneira mais sutil, se materializam em cenas como a que a repórter come uma banana ou que uma das atrizes tem dificuldade para retirar a bota do pé.
As funções na “hierarquia” teatral também são colocadas em questão no espetáculo: as atrizes, ao mesmo tempo personagens de si mesmas, são identificadas por seus sobrenomes, e o encenador é também ator e, ao mesmo tempo, não seria personagem?
A ilusão teatral é quebrada de todas as maneiras, em um movimento de “celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo. (…) o ator como tema e figura principal, a performance como terceiro elemento entre o drama e o teatro”. (Hans-Thies Lehmann). A afirmação da teatralidade se dá com procedimentos simples, desde a aceitação da interrupção da “ficção” pela chegada atrasada de alguns espectadores até com interrupções do diretor porque a cena não está se desenvolvendo ou porque errou a execução da luz.
Propor ao público que escolha quem representará qual personagem é torná-lo, também, parte do jogo desde o início, numa afirmação constante da cena como lugar da criação e não reprodução da realidade. A oposição entre naturalidade e artifício também se faz constante não só no trabalho expressivo das atrizes, mas também na permanente indefinição, para o espectador, do que pertence, de fato, ao ato criador diante de seus olhos, numa espécie de obra em processo, e do que já estava previamente definido.
Neste percurso com “Vazio, É o que Não falta, Miranda”, é o espectador que está representando os papéis de Vladimir e Estragon, não os artistas-criadores. Somos nós, público, que passamos ali “duas horas que não levam a lugar algum”, esperando uma obra perfeita, acabada, completa, com início, meio e fim, que nos faça algum sentido. Revivendo a espera. Enfim, “Esperando Godot”.
Esta foi apenas a primeira tentativa, assim mesmo, um tanto inacabada, cheia de falhas, talvez até leviana. Eu até poderia tentar explicar melhor, mas tem dia que a coisa não desenvolve como a gente planeja e a espera do leitor por algo que lhe preencha já foi longa. Mas só para não acabar assim, sem nada, vou fazer como Liberano: dar uma resumida no que eu tentei dizer através de outra citação. Essas palavras pertencem ao ator Marcelo Olinto e se referem ao espetáculo “Ensaio.Hamlet”, mas adoraria que tivessem sido minhas e, por isso, me dou ao direito de improvisá-las aqui: “O espetáculo então, como que se buscando, se ensaiando e se questionando, cria um espaço onde o ator se torna espelho do homemem processoe, portanto, do público”.
Referências:
FÉRAL, Josette. Teatro, Teoría y Práctica: Más Allas de Las Fronteiras. Buenos Aires: Galerna, 2004.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SILVA, Antonio Carlos Araújo. A Gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2011
DIAZ, Enrique; OLINTO, Marcelo; CORDEIRO, Fábio (org). Na companhiados atores – ensaiossobre os 18 anosda cia dos atores.Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.
(*) Texto originalmente publicado no site do Feto 2013
(*) Texto originalmente publicado no site do Feto 2013