por ana luisa santos
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
ensaio crítico com AQUI – amanhã é outra imagem da Súbita Companhia de Teatro apresentado no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte
“O que não sou deixaria um buraco enorme na terra.”
Clarice Lispector
“Perto do coração selvagem”
“Se a gente fala corre pula tem buraco
Se a gente mija come e escuta é com o buraco
Se a gente cheira entra ar pelo buraco
E quando a gente nasce saímos por um buraco
Virou defunto sete palmos no buraco
Pra fazer filho tem que ser pelo buraco
Toda comida entra e sai por um buraco
E assim as nossas vidas se transformam num buraco
E as estradas estão cheias de buraco
No jornal só passa a gente no buraco
E as enchentes vêm trazendo seus buracos
Assim todos os caminhos só me levam pro buraco
(…)”
Di Souza
“Samba do Buraco”
uma escritora escreve ensaios críticos para teatro. Um ensaio crítico para teatro quer tentar (d)escrever uma cena. A escritora solicita fotografias de divulgação da peça. O texto inclui o release e a sinopse da peça de teatro, além da ficha técnica. A peça é de uma companhia de teatro da região sul do país. O Brasil é um sul de mundo e perdeu um estado de rio grande há poucos meses, submerso. O teatro onde aconteceu a peça fica no Horto, o bairro, na região leste da cidade de Belo Horizonte. O texto do ensaio é publicado no site do Horizonte da Cena com apoio do projeto Arquipélago.
Um ensaio crítico quer se escrever em diálogo com a linguagem da peça. No cenário tem um furo. E o furo na peça? Uma cena é criada como imagem a partir da experiência da escritora. O corpo tem sete buracos. O teatro suspende os lugares, inclusive uma cadeira. As ações tem uma textura de um estado de gozo. Artistas em cena performando artistas em cena fruem um estado de criação (de cenas). A escritora é testemunha da ação junto ao coletivo de pessoas que constituíram a audiência sentada na arquibancada do teatro do Galpão, que já foi um cinema.
Artistas seguem em dúvida sobre a função da arte, a pertinência do trabalho de criação, a viabilidade do trabalho artístico e os percalços desta escolha. Em ação, o elenco reage ao processo de compreensão coletiva de que existe um buraco em cena. A cena da ação é do furo. A peça tem um desejo de nudez. O vão do buraco não é explorado. Assistimos o furo aumentar.
Foto de Halei Rembrandt
A escritora utiliza o computador para digitar o texto. O texto tem espaços não preenchidos. Lacunas entre palavras, frases e parágrafos. O ensaio de escrever crítica para teatro acontece no vazio. Ela não sabe se consegue lembrar de todos os detalhes da peça. A experiência de escrever e recordar a experiência de testemunhar uma ação no teatro.
Uma cadeira fica suspensa no final. Serragem cai em cima da atuação. Na peça, ações são repetidas. O elenco parece celebrar o processo. Não sabem o que fazer com o furo. Alguém sugere consertar o buraco. O furo parece incomodar. O rombo só aumenta. Ouve-se reclamações sobre o vão.
O elenco questiona como pagar as contas trabalhando com teatro, literalmente, em cena. A peça acontece em um sábado e em um domingo às 20 h no Galpão Cine Horto com ingressos a 20 reais e 10 reais a meia entrada. Os profissionais de teatro, assim como de outras linguagens artísticas, recebem, quando conseguem, pagamentos de equipe via projetos de fomento como editais, leis de incentivo, festivais e prêmios, em que concorrem entre si para aprovar seus projetos ou de suas companhias. Bilheterias ou a arrecadação de ingressos não pagam equipes de montagem, elencos, produção e profissionais técnicos, assim como não pagam o aluguel e despesas dos teatros ou centros culturais onde as peças são apresentadas.
Atuar profissionalmente como artista é inviável financeiramente para a maioria das pessoas. Como podemos falar disso em cena? Como estamos falando disso em cena? Temos um furo: um furo no gozo de criar. De estar em cena. Atuar, compor uma companhia de teatro regularmente, é um trabalho sem garantias de remuneração. Depois de aproximadamente duas décadas e meia de história com a criação e regulamentação de leis de incentivo à cultura, assistimos à diversificação da cena, à proliferação dos projetos, à capacitação das equipes. Formamos pouco o público. As temporadas de artes cênicas são curtíssimas, quando existem. Trabalhos estreiam em um final de semana e, no máximo, se apresentam novamente no outro. Artistas dizem que se apresentam para um público de artistas.
Foto de Maringas Maciel
Como escutamos o furo? O que está ruindo visivelmente no teatro? O que fazemos entre as cenas em(de) ruínas? Queremos rir do patético da atriz (chamada de) “dramática” que zomba da técnica de atuação, do clichê do drama, do ritmo do texto, como se fosse simplesmente um problema de atualização de linguagem. Ouvimos o texto com a sobreposição de tempos, que, no entanto, não se deixa circular, ou espiralar, nem quando são evocadas memórias de infância de atores em cena pelo narrador de capa. O texto não voa. Não escapa pelo buraco. Seguimos no teatro e apenas a cadeira é suspensa. Somos expostos a ferramentas sem uso. O ator (chamado de) “sem cabelo” olha o celular em cena. De cá, eu resisto e não olho para a tela.
As coreografias, movimentações pelo espaço, gestos de comemoração, festejos, brindes, cigarros (apagados) em cena, talvez digam sobre como conviver em uma montagem teatral ou uma turnê de apresentação, especialmente em sua porção mais divertida. As relações não parecem muito nítidas a não ser por certa companhia em cena. Nos assistimos. Nos aplaudimos. Ressaltamos e propomos uma leitura da cena. O que nos une é o buraco – ou, às vezes, evitá-lo. O elenco se revolta contra ele. Seguimos tentando enxergar, apesar do furo – não através.
Foto de Halei Rembrandt
O deserto do simbólico. O vazio do sentido. O buraco de Alice. O furo da fechadura. O teto de vidro. O cavalo no telhado. Uma ideia de cena ruiu há bastante tempo. A montagem é uma desmontagem, geralmente. Estar em cena é um gesto muito expandido na era de comunicação digital em rede. Qual é a da presença teatral? O que significa reunir pessoas para ver uma cena ou um conjunto de cenas? Por que reunir essas pessoas sentadas em formato de plateia? Por que se sentar para ver alguma coisa dá uma ideia de assistir? O que sentar faz com o corpo?
O elenco fala dele mesmo, do seu processo, da sua dificuldade de trabalhar com a presença crescente de um furo. O furo parece exterior ou, pelo menos, parece se localizar em uma das extremidades do espaço de ação ou da cena. O buraco está acima da cena (e isso pode dizer muita coisa), mas também aqui quer dizer que o elenco olha em direção ao teto do teatro para se referir a ele. A cena está embaixo do buraco. Uma atriz (chamada de) “muito alta” salta para se aproximar do furo (e depois é apoiada pelo elenco para tentar alcançá-lo). O buraco aumenta. O gozo tem um furo. Ainda bem.
AQUI – Amanhã é outra imagem
RELEASE
“AQUI – Amanhã é outra imagem” é uma ação coletiva que responde de maneira furiosa e apaixonada a tudo aquilo que nos passa e nos acontece hoje. O espetáculo passou por dois momentos distintos de criação: um primeiro processo durante a pandemia de Covid 19 e outro presencial, cujas inquietações se fortaleceram e também se ressignificaram. O que sobressai desse processo todo é o desejo de pensar sobre o próprio ofício do artista e o que nos move em direção ao exercício contínuo e doloroso da criação.
Este projeto é uma parceria entre a diretora Maíra Lour e a dramaturga Lígia Souza que juntamente com o elenco criam a ideia deste lugar que está constantemente ameaçado por forças contrárias, mas que se faz presente e vivo na potência do ato do teatro.
“AQUI” é uma homenagem a nós, artistas, que seguimos fazendo a arte acontecer apesar das dificuldades e dos desvios no caminho. Em cena, artistas se reúnem em um teatro onde um buraco no teto se abre cada vez maior. Ainda assim, elas se olham, se encontram, se abraçam e dançam com paixão, força, potência e amor. É bonito e é só teatro!
O espetáculo estreou em setembro/2022 no Teatro Novelas Curitibanas – Claudete Pereira Jorge em Curitiba/PR e realizou temporada com sucesso de público, totalizando 20 apresentações com ingressos esgotados. Em 2023, foi contemplado no Edital de Circulação do SESI/PR.
SINOPSE
Cinco artistas estão no mesmo espaço. Compartilham também o mesmo tempo e as inquietações de quem cria uma obra de arte. De repente, um buraco no teto se abre, invadindo a cena e o pó que cai lá de cima já cobre seus corpos. O que fazer? A Súbita Companhia de Teatro em parceria com a dramaturga Lígia Souza apresenta “AQUI – Amanhã é outra imagem”, um espetáculo que traz para cena questionamentos sobre a insistência em seguir fazendo arte. Um buraco que para cada uma das personagens significa algo diferente. Mas, aos poucos, ele nos permite ver o céu. Os artistas permanecem neste espaço repetindo suas ações, o gesto eterno que sobrevive ao agora, porque está contido aqui, se inicia e se finda ao começar de novo e de novo.
FICHA TÉCNICA
Direção artística: Maíra Lour
Textos: Súbita Companhia de Teatro
Dramaturgia: Lígia Souza e Maíra Lour
Elenco: Cleydson Nascimento, Dafne Viola, Helena de Jorge Portela, Pablito Kucarz e Patricia Cipriano
Direção de produção: Gilmar Kaminski
Assistência de direção: Anna Wantuch e Vitor Schuhli
Cenário: Fernando Marés
Figurino: Isbella Brasileiro
Iluminação: Beto Bruel e Lucri Reggiani
Operação de luz: Lucri Reggiani
Trilha original e sonoplastia: Rodrigo Stradiotto
Operação de som: Álvaro Antonio e Amira Massabki
Colaboração internacional: Senja Spackman (EUA)
Design gráfico: Pablito Kucarz
Registro em vídeo: Eli Firmeza
Realização: Súbita Companhia de Teatro e Flutua Produções
Agradecimentos do ensaio crítico: Clara Delgado (edição) e Nathalia Larsen.