
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Felipe Cordeiro
Ao longo das últimas décadas, o teatro latino-americano tem sido um território fértil para experiências que entrelaçam arte, memória e comunidade. No centro desse movimento, projetos como Bombón Vecinal, em Buenos Aires, e Reside Amaro, no Recife, emergem como potentes dispositivos de escuta e transformação urbana. Nesta entrevista, conduzimos um percurso pelas ideias e ações da artista Monina Bonelli, criadora que, entre a Argentina e o Brasil, vem redefinindo as fronteiras entre teatro e cidade, palco e vida cotidiana. Com uma trajetória que transita pela cena independente, pelo teatro site-specific e a performance, sua abordagem resgata o caráter essencialmente político da arte, reafirmando o teatro como um espaço de encontro, resistência e celebração coletiva.
Foto: Monina-Bonelli-no-Reside-Amaro-em-Recife.-Divulgacao
- O Teatro Bombón e o projeto Bombón Vecinal desempenharam um papel significativo na revitalização do bairro Abasto, em Buenos Aires. Você poderia compartilhar conosco as origens desse projeto e como ele se desenvolveu ao longo dos anos? Quais foram suas principais inspirações para iniciá-lo?
Abasto é um território no centro geográfico da cidade, de classe média e média baixa, diverso, vibrante. Chamado de Off Corrientes devido à sua concentração de teatros independentes, com uma história ligada ao tango e com um shopping center que prometia uma transformação urbana que ficou pela metade. Esse é o meu bairro. E o da minha sócia, Sol. Escolhemos como epicentro a minha rua e nos expandimos para os arredores. Trabalhamos com os vizinhos.
Realizamos três edições: em 2019, no âmbito do Festival Internacional de Buenos Aires (FIBA), apresentamos a versão completa do projeto com dez ações em casas e ruas do bairro. Depois, no IN-SITU 2022 e 2023, exploramos formatos reduzidos e incluímos propostas voltadas para a infância.
Em Buenos Aires, o projeto foi conduzido pelo nosso grupo Teatro Bombón, junto com Cristian Scotton e Sol Salinas (também vizinha do bairro). Fomos criadores, curadores, mediadores e produtores. Convidamos artistas da comunidade local para desenvolver as obras.
O antecedente direto é o Teatro Bombón, um festival site-specific de peças curtas que nasceu em um centro cultural que eu dirigia. Um edifício de três andares com quartos, cantos e corredores onde convidávamos artistas para criar obras de até 30 minutos em residência e apresentá-las em temporadas de oito domingos, simultaneamente com outras peças. O público recebia um programa com dez obras e podia escolher o que assistir e em que ordem, com a possibilidade de fazer uma pausa no bar pop-up, que se tornava o ponto de encontro entre artistas e espectadores.
Esse festival teve dez edições e produziu cerca de 65 obras. Quando perdemos o espaço por razões econômicas, não perdemos o formato, nem o teatro.
Por outro lado, minha experiência no Centro Cultural 25 de Mayo, onde trabalhei por oito anos, também alimentou esse processo. Trata-se de um espaço público, construído e recuperado pelos vizinhos, com uma forte relação com a comunidade. Lá desenvolvemos projetos de mediação como El 25 va a tu casa, com peças adaptadas à arquitetura das casas dos vizinhos, e promovemos o trabalho de grupos de arte comunitária.
O Bombón Vecinal é a fusão dessas duas experiências: o formato do Teatro Bombón e o trabalho comunitário de proximidade. Propusemo-nos a ativar o bairro como cenário, em sua dimensão simbólica, histórica e concreta.
Convidamos artistas para realizar residências e se apresentarem em um formato de festival, simultaneamente, com propostas ágeis e lúdicas para o público. Desta vez, o ponto de encontro foi a própria rua, com mesas comunitárias e uma gastronomia informal: vizinhos vendendo empanadas e bebidas, como uma grande feira dos moradores.
Essa festa comunitária nos levou a desenvolver uma metodologia em que o processo e o resultado têm o mesmo peso.
- O Festival Reside Amaro, realizado no Recife, se inspirou no Bombón Vecinal. Como surgiu essa colaboração entre artistas argentinos e brasileiros? Quais desafios e aprendizados emergiram desse intercâmbio cultural?
Em 2019, os curadores Paula de Renor e Celso Curi (também cocriador) assistiram ao Bombón Vecinal no FIBA e surgiu a ideia de levá-lo para o Recife. A pandemia atrasou os planos, mas nesse período colaboramos em outros projetos, como Bombón Gesell y Perros — Diálogos Caninos. Finalmente, conseguimos o financiamento necessário e o Reside Amaro tomou forma, integrando diversas iniciativas.
Um dos maiores desafios foi a nossa condição de estrangeiros: gerar confiança, compreender a idiossincrasia local, lidar com as barreiras linguísticas e os códigos de identidade. Morar no bairro foi fundamental. Os vizinhos atuaram como intermediários e embaixadores do projeto. Figuras como Roger de Renor (artista e morador do bairro) e Quiercles Santana (artista colaborador), além da colaboração com curadores locais, Celso e Paula, foram essenciais.
O principal aprendizado foi testar a metodologia de Buenos Aires em outro contexto. A experiência combinou intensidade e gradualidade em apenas dois meses de trabalho, com um enfoque intergeracional e lúdico na interação com os jovens alunos do Curso de Interpretação para Teatro (CIT), do Sesc Santo Amaro.
O processo nos confirmou que os verdadeiros temas emergem na prática, não na teoria. Aprendemos como a arquitetura molda as relações sociais, como a história do bairro continua pulsando no presente. Identificamos o papel das instituições — a escola, a igreja, a praça — e como esses espaços dialogam com a comunidade.
E entendemos que, no Reside Amaro, assim como em todos os projetos desse tipo, a chave não é impor narrativas, mas deixá-las emergir.
Foto: Reside Amaro. Divulgação
- Tendo trabalhado em projetos comunitários em Buenos Aires e no Recife, que diferenças e semelhanças você observa na produção teatral e na recepção do público nessas cidades? Como as especificidades culturais influenciam o processo criativo?
É claro que Buenos Aires tem uma atividade teatral mais sustentada do que o Recife. É uma cidade com temporadas que duram anos, com um público acostumado a uma oferta ininterrupta. No Recife, como me contaram seus próprios artistas, às vezes ensaia-se durante meses para realizar apenas algumas apresentações. Os sistemas são diferentes.
Ainda assim, senti que compartilhávamos um código. Ao longo do processo, tive a oportunidade de trabalhar com artistas pernambucanos de diversas trajetórias e estéticas, e em todo momento senti que falávamos um mesmo idioma. Creio que isso também foi facilitado pela curadoria local.
Em cada comunidade artística, pelo menos nas cidades latino-americanas que conheço, existem padrões que se repetem, tipologias que dialogam com as estéticas do momento e com a história da arte. Se conseguimos mapear bem, compreender, estabelecer paralelos, encurtamos distâncias. Mas sempre devemos estar atentos ao particular.
E o particular muda tudo. O Carnaval e as Festas Juninas no Recife são fundamentais para entender sua estética, seu humor, sua relação com o corpo. No Recife, nessa vila do bairro de Santo Amaro, as pessoas podem estar descalças na calçada como uma extensão de suas casas. Em Buenos Aires, no meu bairro Abasto, não. Lá, o corpo se abraça e se expressa, mas também se recolhe durante os meses frios. Não há mar, há um rio ao qual fomos dando as costas.
Buenos Aires é uma metrópole. Capital do país. O Recife é a capital de um importante estado do interior, mas não um centro financeiro. Suas lógicas são diferentes. Mas, no essencial, o teatro continua sendo um espaço de encontro. Em ambos os festivais, vi vizinhos, famílias, artistas locais vagando pelo bairro como se fosse um cenário. Observando. Habitando-o de outro modo.
Ao final do festival, Roger me disse: “Este foi o nosso Carnaval”. E nessa frase estava tudo: memória, identidade, festa e, sobretudo, a encenação da imaginação, da utopia, do delírio.
Assim foram aqueles três dias. Mas também os meses que passamos juntos.
- No Reside, os habitantes de Santo Amaro contaram suas próprias histórias, mas também tiveram a oportunidade de ouvir histórias alheias, como nos espetáculos argentinos Reina en el Gondo e De la mejor manera. Gostaria de saber um pouco sobre como ocorreu essa curadoria específica para o Recife e também como são feitas essas seleções em outros bairros.
Em Buenos Aires, não tivemos peças convidadas. Tudo eram estreias vinculadas ao bairro e à sua comunidade. Cada obra nascia do território, de seus espaços e suas histórias.
No Recife, o festival buscava justamente esse cruzamento com a Argentina, a partir do formato do Bombón Vecinal, que é uma ocupação site-specific. Por isso, selecionamos peças que ocorressem em espaços não convencionais e que dialogassem com as problemáticas de Santo Amaro.
Um dos eixos foi a diversidade e a identidade de gênero. A comunidade LGBTQIAPN+ tem uma forte presença em Santo Amaro, com espaços emblemáticos como a Casa Bacurau. Por isso, escolhemos Reina en el Gondo, uma história sobre a velhice trans. Além disso, promovemos o encontro com uma artista transgênero local, HBlynda, que guiava o público até a casa onde a peça era apresentada, por meio de uma performance que retratava sua própria história.
Outra característica marcante do bairro é a grande quantidade de restaurantes e bares na vila de Santo Amaro. A partir disso, surgiu a escolha de De la mejor manera, uma peça que gira em torno de dois irmãos donos de um bar no dia da morte do pai.
Em cada bairro, a curadoria é um jogo de escuta e observação. Não se trata apenas de escolher obras, mas de entender como elas dialogam com o local e como ressoam em quem o habita.
Espetáculo Reina en el Gondo. Divulgação
Foto abaixo: Espetáculo De la mejor manera. Crédito: Ambar Violeta.
- Na sua opinião, de que maneira o teatro comunitário contribui para o fortalecimento dos laços sociais e da identidade cultural de uma comunidade? Você poderia compartilhar algum exemplo significativo de transformação que tenha presenciado por meio do teatro?
Quero esclarecer que o que propomos é teatro em comunidade, mas não necessariamente dentro da lógica tradicional do teatro comunitário. Não trabalhamos com grupos a longo prazo, nem com processos formativos contínuos. Nossos projetos têm um tempo determinado, com um processo e um resultado que devem ocorrer em datas concretas.
Além disso, nossas propostas dialogam com outras linguagens artísticas e se inscrevem no campo da performance. São ocupações efêmeras, onde o teatro entra nas casas, nas ruas, nos espaços cotidianos, alterando por um instante seu significado.
Dito isso, estou convencida de que tanto o teatro comunitário quanto nossas intervenções fortalecem os laços sociais e a identidade dos bairros. E acredito que, especialmente nestes tempos, esse tipo de experiência é fundamental para o cuidado da democracia.
Contar sua história, enquadrá-la em um espaço artístico, compartilhá-la com quem está ao seu redor. Abrir sua casa. Ser anfitrião. Celebrar na rua. Parar para olhar seu bairro cotidiano com outros olhos e fazê-lo junto com os outros. Tudo isso nos afirma, nos projeta, nos faz sentir importantes, visíveis, parte de algo.
Esses projetos avivam a memória e constroem uma nova memória coletiva. Depois de vivê-los, o bairro nunca mais é o mesmo. Às vezes, a transformação é concreta: resolve-se um conflito de convivência, revitaliza-se uma esquina abandonada. Em todos os casos, a mudança é simbólica.
Poderia contar muitos exemplos, mas escolho um: Ligia, no Recife. Ligia é uma moradora aposentada, ainda jovem, reservada. Participava de um grupo de Boi Marinho, mas vivia com sua porta fechada, em conflito com sua vizinha ao lado. Algumas semanas antes do festival, sua vizinha se mudou e o festival convidou o Boi Marinho para se apresentar. Então, Ligia decidiu pintar sua casa de branco e rosa vibrante e colocar um grafite com a imagem de um boi.
Aproximei-me para celebrar sua iniciativa e juntas conversamos sobre como melhorar sua sala. No dia do festival, o Boi Marinho encerrou o domingo com um cortejo pelas ruas do bairro. Durante o percurso, improvisou chamadas, aquelas canções em que o público repete versos relacionados aos vizinhos e às casas.
Quando o boi chegou à porta de Ligia, entrou em sua sala. Ela havia movido todos os móveis. As janelas estavam abertas. O boi dançou no seu piso de ladrilhos antigos, enquanto ela tocava na corda dos tambores. O boi abençoou sua morada.
Naquele momento, compreendi a profundidade do impacto. Não apenas sobre ela, mas sobre tudo o que aquilo significava. Foi uma troca justa e alegre, uma celebração da vida com portas abertas.
FOTO – Reside Amaro. Divulgação.
- Quais são os principais desafios que você enfrenta ao implementar projetos de teatro em comunidade em diferentes contextos urbanos? Como você adapta seus enfoques para atender às necessidades e particularidades de cada comunidade, país e contexto histórico-social?
O primeiro desafio é gerar confiança. Sem confiança, não há participação. Para isso, é necessário entender o ritmo do bairro: quando e onde é o melhor momento para conversar, como integrar o projeto no tempo cotidiano da comunidade. A vida continua enquanto preparamos o festival, e devemos fazer parte desse fluxo.
A ferramenta fundamental é a escuta. Uma escuta ativa, afetiva e seletiva. Não apenas receber informações, mas estar presente, dar atenção sem mesquinhez.
A partir dessa escuta, é preciso encontrar a distância justa. Próxima o suficiente para vibrar junto, mas com o espaço necessário para perceber a dramaturgia oculta no real, os arquétipos que subjazem em cada história.
No Reside Amaro, a chave foi a figura do vizinho embaixador, que conecta e valida a proposta. Roger de Renor foi essa figura. Com sua casa de portas abertas e seu olhar lúdico e generoso, nos apresentou a cada vizinho, facilitou os encontros, serviu de ponte.
No início, alguns vizinhos demonstraram resistência. Não entendiam bem para onde toda aquela informação estava indo. Mas a paciência, a persistência sutil e o tempo compartilhado fizeram seu trabalho.
Cada bairro tem seu próprio código. A proximidade dos corpos, o volume e o ritmo ao falar. Em Santo Amaro, um ex-bairro fabril, as ruas são estreitas, tudo está próximo. O contato físico é inevitável.
No Abasto, por outro lado, as ruas são largas, há prédios, o metrô por perto. A distância entre os corpos é outra.
A adaptação não é um conceito teórico. É um gesto. É saber ler as formas de habitar cada lugar.
Foto abaixo- Torneio de Dominó com os vizinhos. Crédito:Ivo-Barreto
FOTO – Encontro com vizinhos, criadores e artistas. Crédito: Rogério Alves.
- A Argentina é um dos principais referenciais na luta por memória e justiça na América Latina, com movimentos como as Mães da Praça de Maio e o Teatro Abierto, que inspiram todo o continente. Como a eleição de um presidente como Javier Milei impacta as diversas conquistas políticas, sociais e culturais?
O impacto é profundo. Em um país cuja história é atravessada pela luta pela memória, pelos direitos humanos e pela justiça social, a chegada de um governo que reivindica o negacionismo e a ultradireita não é apenas uma mudança de gestão, mas uma tentativa de desarticular as bases da nossa identidade democrática.
A arte e a cultura são sempre os primeiros alvos nesses modelos. Projetos são desfinanciados, o papel do Estado na promoção cultural é deslegitimado, tenta-se impor uma lógica de mercado em espaços que possuem outra natureza. Mas o problema vai além da Argentina. É um fenômeno global.
Estamos vivendo uma mutação de época, impulsionada por mudanças tecnológicas que reestruturam paradigmas, narrativas e vínculos. Uma distopia pós-pandêmica que promove a violência e o ódio como prática social. Não é coincidência que, hoje, mais do que nunca, a saúde mental seja o calcanhar de Aquiles da vida contemporânea. Estamos sendo atacados em nossa percepção do mundo, em nossa imaginação, em nossa utopia. E o detonador está na palma de nossas mãos: um celular.
A história argentina nos ensinou que esses ataques ao humano geram reação. O Teatro Abierto nasceu durante a ditadura. Quando a opressão avança, a arte responde com organização, com criatividade, com comunidade. Digo isso não como um discurso inflamado, mas como um alerta. Uma esperança.
Por isso, acredito que é urgente manter os espaços de arte e comunidade, pois são acervos de afetividade, de encontro. Espaços que nos conectam com o melhor do humano. Talvez, no fim das contas, a revolução da ternura possa fazer a diferença.
- Como você vê o futuro do teatro comunitário na América Latina? Quais iniciativas ou mudanças você considera necessárias para fortalecer e expandir esse movimento?
O teatro comunitário — ou melhor, as experiências teatrais em comunidade — têm um potencial imenso na América Latina. São espaços de resistência, memória e encontro. Em um contexto de crise, onde o tecido social se fragmenta, esses projetos são mais necessários do que nunca.
Para fortalecê-los, é fundamental que existam políticas culturais que os sustentem. Mas também é preciso encontrar estratégias de autogestão e financiamento que não dependam exclusivamente do Estado.
Outro ponto-chave é ampliar as redes de intercâmbio entre diferentes países, criar circuitos de circulação, compartilhar metodologias e aprendizados. O teatro comunitário cresce quando se interconecta.
E, além disso, a formação. Que existam mais espaços onde as novas gerações possam experimentar, testar, se desafiar. Há um campo imenso no cruzamento entre teatro comunitário e performance, na interseção com as tecnologias, no diálogo com outras artes.
A chave é continuar expandindo as formas de fazer sem perder a essência: o encontro com o outro, a construção coletiva, a celebração da identidade.
FOTO- Inauguração do Beco do Roberto. Cred: Rogerio-Alves
- Recentemente, você participou de projetos que exploram a relação entre humanos e animais no contexto urbano, como a intervenção PERROS — Diálogos caninos na MITsp. O que te motivou a abordar essa temática e quais foram os principais desenvolvimentos dessa experiência?
O projeto PERROS — Diálogos caninos nasceu de uma observação cotidiana e pessoal: minha relação com meu cachorro. Mas também do registro desse vínculo no meu entorno, na rua, nas redes. Me surpreendeu o quanto esse tema ocupa espaço na agenda social, quanto se discute sobre convivência interespécie, afetos, luto, direitos. Isso me levou a uma exploração filosófica: o que significa compartilhar a cidade com outros seres, com outras sensibilidades?
A primeira coisa que fiz foi formar um grupo de pesquisa com acadêmicos e artistas, buscando um cruzamento entre teoria e prática. Depois, passamos para um trabalho de imersão no Parque Augusta, no centro de São Paulo.
Esse processo foi desenvolvido junto com Celso Curi (cocriador), Renata Melo (artista convidada), Sergio Carrera (artista mediador) e um grupo de 20 artistas residentes de diferentes disciplinas, graças a uma parceria com a SP Escola de Teatro.
Nossa principal ferramenta foi o passeio com cães e a conversa com os vizinhos. Por isso, decidi morar durante dois meses a duas quadras do parque, com meu cachorro, integrando-me à comunidade de moradores que compartilhavam esse espaço. Assim, conseguimos criar uma lista com mais de 300 pessoas, detalhando tanto suas características quanto as de seus cães.
O ponto de partida era nos reconhecermos como parte de uma sociedade interespécie, onde todas as personalidades importam e onde estar aberto ao improviso é a única regra.
A partir dessa premissa, desenvolvemos diversas ações artísticas:
- Um projeto epistolar com cartas escritas por humanos e cães, explorando seus vínculos a partir da ficção e da emoção.
- Um livro artesanal com poesias e desenhos de artistas argentinos e brasileiros.
- Um workshop de dança interespécie, investigando o movimento compartilhado entre humanos e cães.
- Uma proposta de teatro-assembleia, onde o público discutia temas caninos na cidade a partir de testemunhos reais.
- Uma instalação visual na altura dos olhos dos cães, convidando os humanos a mudarem sua perspectiva.
- Quatro audioguias que narravam histórias de cães do bairro: relatos de luto, resgate e adoção, a convivência entre pessoas em situação de rua e seus cães, e até uma história em tom de comédia sobre um vizinho anti-pet preso à lógica de consumo de uma grande rede de pet shops (Petz).
Como em outros projetos, as ações artísticas ocorriam simultaneamente, permitindo que o público traçasse seu próprio percurso dentro do parque e vivesse a experiência no seu ritmo.
A ideia era gerar um espaço de encontro onde arte, convivência urbana e presença animal se misturassem de forma lúdica e reflexiva.
- Você poderia nos contar sobre sua formação em atuação e dramaturgia? Quais artistas ou movimentos teatrais mais influenciaram sua trajetória e de que maneira isso se reflete no seu trabalho atual?
Minha formação é uma mistura de exploração, experiência e aprendizado autodidata. Estudei atuação e dramaturgia em espaços formais, direção em oficinas privadas, e curadoria e gestão a partir da prática, combinando estudos específicos com uma busca constante no fazer.
Mas meu verdadeiro aprendizado veio do contato com diferentes linguagens e processos criativos. Do trabalho na cena independente, da tentativa e erro, da imersão em projetos que me obrigavam a reformular as formas de fazer teatro.
O teatro independente argentino foi uma grande referência. Cresci vendo e fazendo teatro em espaços alternativos, onde a experimentação e a autogestão são essenciais. Também fui marcada pela cena da performance e pelo teatro site-specific, onde o espaço e o contexto fazem parte da dramaturgia.
Em termos de influências, há muitas. Desde o teatro comunitário de grupos como Catalinas Sur até a obra de criadores como Ricardo Bartís, Vivi Tellas e Lola Arias, que trabalham com memória, documentalidade e performance. Também a tradição do teatro como ferramenta política, de Brecht a Boal, e a arte relacional de Roger Bernat.
Mas meus interesses são mais amplos. Me interessa o teatro em verso, o teatro musical, a dança-teatro. Não quero me limitar a um único território, nem me definir por uma única etiqueta. Meu interesse mais profundo é o conhecimento, a exploração, o prazer da diversidade.
Tudo isso se reflete no meu trabalho: a ideia do teatro como experiência, como intervenção no real, como espaço de transformação.
- Quais conselhos você daria para jovens artistas latino-americanos interessados em se envolver no teatro?
Primeiro, que combinem a formação com a prática. A formação acadêmica é valiosa: ela oferece ferramentas, amplia horizontes e permite dialogar com outras disciplinas. Mas o teatro também se aprende na prática, no fazer, na cena, no encontro com os outros.
Segundo, que não esperem as condições perfeitas. Que não aguardem validação externa. Que façam. Que criem seus próprios projetos, que investiguem, que se equivoquem, que explorem sem medo.
Terceiro, que estudem a história do teatro. Que olhem além do seu contexto imediato, que se nutram do que foi feito antes, que descubram as raízes do teatro em seu país e na região. Para inovar, primeiro é preciso conhecer.
Quarto, que gerem redes. O teatro não é um caminho solitário. É comunidade, é diálogo. Encontrar companheiros de jornada, colaborar, trocar experiências.
E, por último, que confiem no seu olhar. Que não tentem se encaixar no que acreditam que “deveria ser” o teatro, nem no que o mercado exige, nem nas estéticas da moda. Que busquem sua própria forma de fazer, porque o teatro continua sendo, acima de tudo, um espaço de liberdade e aprendizado.