Fotos Annelize Tozetto |
Por Soraya Belusi (*)
Cine Monstro 1.0 apresenta-se como uma obra em processo. E este não é um dado que mereça ser ignorado. Embora alicerçada em todos os elementos de uma encenação dita “acabada”, propõe-se, neste momento, a estabelecer uma relação com o espectador como trabalho em desenvolvimento, em que as fissuras, abismos e erros são, mais que permitidos, necessários no ato da criação, alterando, assim, a própria relação do ator com os elementos que tem disponíveis para jogar.
Era a primeira vez que Enrique Diaz se apresentava com o texto inteiro memorizado, sozinho em cena, apenas na companhia de um velocípede, um banco, copos de água e uma taça de vinho. O espaço é “emoldurado” por uma estrutura branca formada por três lados que, mais tarde, serve de tela para a projeção de imagens. “Sabe quando parece que já começou e, na verdade, já começou? Não é o caso”, disse ele, iniciando sua relação com o público. Explicou que normalmente entraria pela coxia, pegaria o velocípede e daria três voltas em torno do palco. Mas que, devido às circunstâncias, começaria de uma outra maneira. Procedimento de encenação, fixado na escritura do espetáculo, ou tentativa de improviso do ator, são algumas das questões que começam a se apresentar ao longo do trabalho. A apresentação, que integrou a Mostra Oficial do Festival de Curitiba 2013, era o primeiro “teste” oficial do ator no contato com um público mais amplo, experiência que ele volta a ter de 18 a 21 de abril, em São Paulo, no Itaú Cultural.
“Foi super importante ter feito aqui. Essa peça, além de ser um monólogo, que eu nunca fiz, tem uma novidade para mim. Porque ela, como nos outros textos do MacIvor, lida muito com o público, não no sentido de ser interativa, mas de usá-lo como interlocutor de fato. Isso é muito específico no sentido de trabalhar na sala de ensaio, com as pessoas da equipe, e muito diferente de fazer com o público. A proposta de fazer as apresentações abertas ou as leituras (realizadas ao longo de todo percurso criativo) era já uma tentativa de ficar sempre me relacionando com essa instância de comunicação no processo. Ontem (quarta-feira) foi uma etapa a mais, porque, além de um público maior e com o texto memorizado, eu tinha as condições de um espetáculo normal. Então, foi um bom começo”, conta o ator e diretor, em entrevista ao Horizonte da Cena no dia seguinte à apresentação no Teatro Guairinha.
Encenação, dramaturgia e a atuação se constróem de maneira fragmentada, caleidoscópica, entrecortada, de forma que o espectador não tenha domínio completo dos discursos e imagens que Diaz constrói em seu corpo, pequenos flashes de lógica, que vão sendo montados aos poucos, complementando-se e sobrepondo-se. O texto de Daniel MacIvor – mesmo autor de In on It e A Primeira Vista – se configura como narrativas estilhaçadas, incompletas, indícios da presença do mal, como num esquartejamento de um pai pelo seu filho. O espectador, primeiramente testemunha de tais atos, pode a qualquer momento transformar-se em cúmplice, à medida que se vê fascinado por descrições de perversidade. Cabe a Enrique Diaz criar esses trânsitos, estabelecer esse jogo, explodir-se em vários espectros de monstruosidade e humanidade, enquanto sabe, ao mesmo tempo, não ter o controle sobre os outros (tanto os múltiplos personagens que apresenta quanto a própria reação da plateia).
“Se tem algo que precisa ser trabalhado é em relação ao meu organismo dentro do espetáculo. É uma peça que precisa do público, mas não é agradável, à medida que as pessoas estão sendo afetadas, elaborando o estímulo de maneira interessante, mas não estão demonstrando um prazer porque são a questão daquilo que está sendo mostrado. Onde a peça vai, onde ela toca realmente são coisas que eu vou ter que entender melhor”, afirma Diaz, desmentindo que o intuito é, unicamente, levar o público a uma espécie de incômodo permanente. “Eu, como espectador, tenho a autoimpressão de que posso falar que loucura isso, incrível, divertido, do patético do ser humano, sem ter que me defender daquilo. Posso ver essas coisas e rir disso; não quero necessariamente que as pessoas fiquem incomodadas porque não gosto de um lugar pretensioso para mim, até porque a peça é lúdica, brinca com trash, como Tarantino brinca com exagero, com a morte sanguinolenta, bem e mal. Agora, realmente, não há como controlar, o texto leva a muitos lugares”, completa.
Cofundador da Cia. dos Atores (da qual se desligou no fim do ano passado), Diaz tem o processo como elemento de sua gramática de encenador, evidenciado em trabalhos como “Ensaio.Hamlet” e “A Gaivota”. Essa dimensão do encontro, da presença do público, trouxe, segundo ele, a convicção de que a forma processual como vem se aproximando de “Monster” (nome do projeto final) era, neste caso, o caminho a ser traçado. “Estou me jogando”, afirma, “Ainda é um desafio. Primeiro, porque tudo é inteiramente esquisito, em termos técnicos, porque fazer um monólogo é muito novo para mim. Segundo por causa de um jogo de perversidade que tem no personagem, tem que procurar um certo caminho, que está mal traçado ainda, mas tenho certeza de que este vai ser o grande avanço no espetáculo. Isso não existe ainda, não é uma peça, é um bom argumento que eu tenho que procurar ali como eu faço para ser uma peça. Tem uma sensação muito boa de ter me aproximado dessa maneira processual porque acho um milagre não ter errado nada e chegar até o final”, explica.
Esse novo momento, desvinculado da companhia que criou há 25 anos, tem entre seus ganhos o retorno ao trabalho de ator. “Tenho vivido a dor e a delícia ao mesmo tempo desse momento. Mas, o mais significativo, é que estou trabalhando muito como ator. O meu papel no grupo ocupava um lugar que demandava muito e, agora, diminui o lado de administração, de liderança. Talvez, tenha acabado aquela coisa da figura do pai mesmo. E aqui, no espetáculo, o pai é assassinado e cortado em pedaços, simbolicamente”, brinca.
(*) A jornalista viajou a convite do evento.