Crítica da palestra-performance Experimento Concreto, da Plataforma ÀRÀKÁ (Laís Machado e Diego Araúja) apresentada na Casa Hoffman no âmbito do Festival de Curitiba de 2023.
– Por Guilherme Diniz –
A palestra-performance Experimento Concreto, concebida pela Plataforma ÀRÀKÁ (BA), é sobretudo uma crítica releitura histórica da formação da república brasileira, investigando uma de suas problemáticas mais profundas, isto é, os dilemas raciais. O trabalho cênico é assertivo ao frisar que é impossível pensar a construção da vida republicana neste país sem considerar as desigualdades e as violências raciais como seus elementos constitutivos, operacionais e sistêmicos, seja no âmbito político-econômico, seja na esfera sociocultural. No interior desse imbróglio colossal, a principal discussão se volta para os papeis e os significados do mestiço no imaginário brasileiro desde o início do século XX até os primeiros anos do século atual.
Na obra Rediscutindo a mestiçagem no Brasil (aliás, este é, para mim, um dos mais argutos livros sobre a questão), Kabengele Munanga situa muito bem o debate: historicamente a figura do mestiço se projetou (e continua a ser) como uma das arenas político-ideológicas mais poderosas na defesa deste ou daquele projeto de nação, de acordo com os distintos interesses e visões de mundo em jogo. Se inicialmente a mestiçagem era vista como puro sinônimo de atraso mental e cultural diante das nações tidas como civilizadas e superiores (leia-se: brancas), ao longo do tempo este ponto de vista sofrerá transformações. Por exemplo, intelectuais como Arthur Ramos e Gilberto Freyre (este último mais do que o primeiro) atribuíram uma certa conotação positiva à mestiçagem, tomando-a como símbolo de uma democrática harmonia nacional. Tanto no âmago das políticas de branqueamento, instituídas no Brasil, quanto na formulação do mito da democracia racial, a mestiçagem é um elemento central. Munanga também destaca a atuação aguerrida dos movimentos negros ao ressignificar de modo radical a imagem da pessoa mestiça, recusando o ideal da brancura e afirmando politicamente a negritude de negros e negras de pele mais clara. Portanto, disputar ou rejeitar o corpo “mestiço” significou (e significa ainda hoje) tensionar os caminhos do próprio país, incluindo suas imagens, seus afetos e seus futuros.
Em cena, a atriz Laís Machado lida com essa paisagem histórica. A sua postura é a de quem escava as violentas contradições de um passado ainda vivo, cujos efeitos físicos e simbólicos se reatualizam, gerando novas tecnologias de controle, extermínio e hierarquização. Para redimensionar esta historiografia, Laís revisita documentos, personalidades, obras teóricas e arquivos. Mais importante que apenas coletar numerosos referenciais é o modo como dramaturgicamente tais materiais são interrogados. Os escritos do médico João Batista de Lacerda (aquele que em 1911 profetizou o desaparecimento de pretos e pardos no intervalo de cem anos) são talvez o principal exemplo. A atriz estabelece os principais tópicos do texto e, a partir daí, vai desmontando seus argumentos por meio de intervenções bem humoradas que denunciam criticamente seu absurdo. Nesse sentido, Experimento Concreto demonstra que os arquivos por si só podem não dizer muita coisa se a eles não forem endereçadas questões desestabilizadoras. É fundamental saber indagar as fontes históricas como um material latejante e à espera de distintas leituras. Toda vez que isso é feito, o passado é em alguma medida recomposto.
Em Experimento Concreto há um forte debate a respeito do que é o conhecimento científico, suas bases e contextos de elaboração. Ao mesmo tempo em que nos mostra que a racionalidade científica não prescinde de rigor metodológico, analítico e procedimental, Laís nos provoca a reconhecer que as ciências (e pseudociências), independentemente de suas áreas, não estão alheias ao mundo que as rodeia. O caso das teorias eugênicas e a estruturação do chamado racismo científico são modelares. Há dimensões político-ideológicas nos laboratórios, nas teses, nos tratados, nos mais etéreos conceitos e em toda a fraseologia acadêmica. No Brasil, as faculdades de direito e de medicina foram espaços de formulação e difusão de teorias raciais e racistas especialmente entre a década de 70 do século XIX e meados do século XX, como aponta Lilia Schwartz, no Espetáculo das Raças.
Por este caminho, se encararmos a noção de palestra-performance menos como uma categoria estanque e mais como um prisma de leitura ou uma possibilidade de aproximação da obra, há algo que me instiga fortemente em Experimento Concreto: o fato de que a construção do conhecimento é uma prática, uma tomada de posição, um exercício do pensamento que implica o próprio corpo e direta ou indiretamente atravessa o corpo de outrem. O pensar é necessariamente uma relação com o mundo e a sua formulação (a sua divulgação é ainda mais) é uma performance se a vermos como uma ação que deseja intervir na realidade. A distinção absoluta entre teoria e prática, invenção e pesquisa, imaginação e metodologia não faz o menor sentido para as ciências e tampouco para as artes. Entre outras coisas, a palestra-performance é um bom alerta contra tais entendimentos limitados.
Ainda que discorra sobre problemáticas altamente complexas e instigantes do ponto de vista político e histórico, um teor aridamente expositivo (por vezes conteudista) está presente em alguns momentos da performance, deixando-a aqui e ali um tanto engessada. Contudo, Laís, na maior parte das vezes, tempera o seu discurso com tiradas, entonações e gestualidades irônicas que, causticamente, conferem dinâmica à apresentação. A performer se vale de cacoetes e convenções caros a um certo tipo de palestra para ir aos poucos revirando-a. Uma projeção acompanha todo o espetáculo. Os slides, habitados por memes e figurinhas do Whatsapp, arrancam boas risadas ao passo que dessacralizam academicismos. Desponta aqui um sarcasmo crítico perante uma historiografia hegemônica que massacra vidas negras.
Há no palco uma mesa repleta de copos, taças e alguns tubos de ensaio. Uma fina cortina de fumaça ajuda a delinear um espaço que sutilmente remete a um laboratório de química. Esta analogia é muito importante nesta performance. Em primeiro lugar porque este país sempre foi encarado como um “laboratório social” pelas elites intelectuais que almejavam moldá-lo, de cima para baixo, segundo seus brancos ideais, tomando os corpos negros e indígenas, por exemplo, como meros objetos de estudo (e de descarte). A imagem do laboratório reafirma o fato de que o Brasil e a identidade nacional são efetivamente invenções. Ao mesmo tempo, o laboratório é também local de transformação e experimentação de novos arranjos e combinações. É esta particularmente a atitude de Laís ao repensar a história brasileira e reimaginar rotas de pensamento a fim de desestabilizar as estruturas dominantes.
Em diversos momentos a atriz quebra os copos que repousam sobre a mesa, atirando-os ao chão para elucidar melhor o seu pensamento. Este ato me parece crucial na concepção de Experimento Concreto, pois é isso o que ela realiza continuamente: desestrutura discursos, imagens e visões históricas racistas; escancara as quebraduras de um projeto nacional e, nas fraturas, torna visível uma história atravessada por violências, apagamentos e inconsistências bem distante da paisagem plácida e harmônica que habita certos livros e manuais. Se nos apegarmos à etimologia do termo análise como separação e desmembramento de um sistema para estudar suas propriedades, Laís é literalmente uma analista. De alguma forma, a atriz me lembrou daquele conhecido eu-lírico da poeta Ana Martins Marques que, no poema “Tenho quebrado copos”, que integra seu brilhante O livro das semelhanças (2015), repetidamente quebra copos e observa, com grande interesse, os seus restos. Nos cacos também estão as tensões e as fragilidades das coisas.
Um tópico em especial parece perturbar de modo incisivo a atriz: a questão do colorismo. Resumidamente, o colorismo é definido como um desdobramento do racismo, que estabelece hierarquias internas entre pessoas negras de pele mais clara e pessoas negras de pele mais escura. O primeiro grupo supostamente deteria certas facilidades e vantagens inalcançáveis para o segundo. Laís se coloca contra esta perspectiva. Acerca disso não tenho muito a dizer: o colorismo é uma importação pobre, malfeita e deturpada de debates estadunidenses para a complexa realidade brasileira. Nossa literatura especializada não sustenta essa disparidade sistemática entre pretos e pardos. Ambos são atingidos pela letalidade, pelo encarceramento em massa, pela desigualdade socioeconômica etc.
A respeito do colorismo, a palestra-performance não se debruça sobre certas questões que me parecem fundamentais para compreender melhor este fenômeno: por que o colorismo adquiriu tanta projeção entre determinadas parcelas da juventude negra? O que há nele de tão sedutor? Como o legado político e teórico dos movimentos negros do século passado lida com este novo fenômeno ideológico? A quem interessa propagar esta ideologia? Não seria interessante, por exemplo, desmontar (assim como foi feito com a ótica eugênica de João Batista de Lacerda) os argumentos de uma das principais ideólogas do colorismo, a advogada Alessandra Devulsky? Ainda que tenha um caráter algo tosco, o colorismo está cada vez mais escudado por uma bibliografia crescente.
Houve um momento na sessão a que assisti no qual todo o discurso, eivado de informações, pormenores e referências bibliográficas foi singularmente desestabilizado. O avassalador morticínio do nosso povo preto, demonstrado por gráficos, embargou a voz da atriz. Aconteceu ali uma suspensão, um furo, um atravessamento (estou tentando encontrar palavras…). O rico e importante arsenal teórico também possui os seus limites quando a colossal violência insiste em minguar nossas possibilidades de imaginar outros mundos possíveis para as gentes negras como a atriz, como eu, como eventualmente você que está lendo. Não são apenas estatísticas. São nomes, vidas, sonhos triturados por uma máquina de moer. Laís Machado é uma mulher negra cuja pele é mais clara. O experimento concreto é também o corpo dela, embora o trabalho não encare a experiência pessoal da artista como o alfa e o ômega das questões abordadas.
Experimento Concreto é um ponto de inflexão na trajetória da Plataforma ÀRÀKÁ, pois é a sua primeira palestra-performance. A plataforma, fundada em 2017 por Laís Machado e Diego Araúja, é um projeto contínuo de pesquisa e experimentação poético-cultural a partir de tecnologias, tradições e matrizes africanas, afro-diaspóricas em geral e afro-brasileiras em particular. A ÀRÀKÁ opera em diferentes linguagens artísticas, propondo também emaranhamentos entre elas. Ainda assim, Experimento Concreto recoloca uma das principais bases de trabalho da ÀRÀKÁ: a junção entre investigação multidisciplinar e uma interlocução vigorosa com o seu tempo histórico como possibilidade de reconfigurar as imagens do mundo, pois concretas não são apenas as violências, mas sobretudo as nossas pulsantes vidas.
P.S.: Ao final da performance, Laís Machado distribui para o público presente um QR Code impresso em papeizinhos quadriculados. O código dá acesso a um link no qual estão compilados diversos textos e livros para que cada pessoa possa refazer, desdobrar e aprofundar as reflexões desenvolvidas em cena. Este recurso é duplamente instigante. Em primeiro lugar porque convoca os espectadores a assumirem uma posição, uma atitude crítica diante das problemáticas, uma postura de cocriadores do trabalho cênico. Em segundo lugar, este gesto dialoga imensamente com o pensamento da crítica teatral Daniele Avila Small para quem a dimensão teatral não se esgota no aqui-agora da apresentação, mas pode ser refeita e recriada nas memórias e nos modos como o público revê arquivos das peças assistidas. A conversa e a experiência podem continuar…