Por Felipe Cordeiro
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica a partir do espetáculo “Marku Musical”, visto na ocasião de sua pré-estreia, no dia 09 de maio, no CCBB-BH.
O espetáculo Marku Musical atravessa a trajetória de Marco Antonio Ribas (1937-2013), o Marku Ribas, nascido em Pirapora, cidade ao norte de Minas Gerais. O trabalho, dirigido por Lira Ribas e Ricardo Alves Jr., tem como base trechos de uma autobiografia inédita de Marku, assim como a presença em cena de sua companheira Fatão e de suas filhas Lira e Julia Ribas.
Parte do quebra-cabeça que será apresentado ao público é entregue ainda no foyer do teatro: a identidade visual do programa evoca um disco e seu encarte, com cartões que apresentam colagens fotográficas de diferentes momentos da trajetória do piraporense, acrescidas de espadas-de-São-Jorge, espirais e cursos d’água. Vê-se também o artista envolto em nuvens e flores azuis. No verso de cada fotografia constam dados da obra em questão, como os percursos estéticos, políticos e ideológicos, depoimentos da equipe principal, ficha técnica e texto curatorial.
O conceito de amefricanidade, que dá título a esta crítica e foi proposto pela também mineira Lélia Gonzalez, destaca as singularidades histórico-culturais das populações afrodescendentes na América Latina (ou Améfrica Ladina, outra categoria proposta pela intelectual), indo além do termo geográfico. Assim como Lélia, Marku dedicava um olhar especial às suas origens negras e indígenas – o que é ostensivamente trabalhado no espetáculo.
A sinuosidade da arte de Marku desfila pela cena, preenchendo de vida um palco que vai da nudez ao paroxismo imagético e sonoro. A peça começa sutil, com o elenco compartilhando vozes, fazendo, aos poucos, a cama da música que virá. Todos os temas de Marku estão ali, como a síntese de seus próprios versos: Calunga, canoeiro, boiadeiro, barrankeiro / Calunga, lavadeira, rezadeira, barrankeira.
Fotos de Pablo Bernardo
Nas palavras de Rafael Queiroz e Stephen Bocskay:[1] “Esse músico negro, nascido às margens do Rio São Francisco, […] vai entrar em contato com a cultura afro-indígena de sua região, seja por meio de danças e músicas como o cateretê e o carneiro, seja vivenciando as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Nesse sentido, a expressão artística e intelectual de Marku deve ser entendida também como prisma irradiador de ‘oralituras da memória’, que são o legado vivo das culturas africanas predominantemente ágrafas e de rica textualidade oral que foram menosprezadas por panteões, cosmologias e teogonias eurocêntricas em países como o Brasil.”
Fátima Ribas, a Fatão, personagem-pessoa de honra em cena, é quem vai dispondo essas histórias sobre a mesa, amplificadas pela projeção das lentes da câmera de Gabriel Mendes. Estas revelam ao público arquivos que mantêm e disseminam as memórias do artista: fotos, trabalhos manuais de artesanato, bordados, folhas de plantas e mais.
Como é recorrente nos trabalhos de Lira Ribas, o cuidado visual e a riqueza de detalhes desses objetos cênicos atuam como fatores hipnotizantes. Não é diferente nesta direção de arte e nos figurinos, que apontam tanto para os símbolos das tradições das culturas originárias e ribeirinhas, com o uso de grandes chapéus e tiras que dançam, quanto para o afrofuturismo pop evocado nos plissados, brilhos, assimetria dos cortes e transparência do tule zoe.
Numa montagem que propõe acontecimentos simultâneos, a presença de Fatão em cena joga com diferentes regimes de visibilidade e pactos com o real, visto que ela é tanto parte viva e pulsante da história que se encena quanto, ao representar a si mesma, em diálogo com o ator Alexandre Massau (que interpreta Marku), cria ficções diante do público espectador – o mesmo acontece com Júlia e Lira, que também se autorrepresentam. Com efeito, a esposa de Marku chegou a ser aplaudida em cena aberta e fez de sua história de amor, junto com a intermidialidade da obra do barranqueiro, os pontos altos do espetáculo.
Além disso, a montagem reúne diversas linguagens artísticas para criar estratégias documentais que resgatam passagens da vida e obra do artista mineiro. Por meio de seu trabalho como cantor, músico multi-instrumentista, compositor, ator, performer e outras variações dessas atividades, Marku pintou o país com as cores da ginga e da filosofia de seu samba regué. Além da produção nacional, destacam-se trabalhos ao lado de The Rolling Stones, do diretor Robert Bresson, no filme “Quatro Noites de Um Sonhador” (1971), e a relação com figuras proeminentes como Bob Marley e James Brown – estes durante sua estadia no Caribe.
Marku também bradou contra a ditadura militar, que o censurou e prendeu aos 21 anos; participou de importantes movimentos de resistência cultural afro-americana, afro-caribenha e afro-brasileira, além de celebrações nos contextos das independências de Angola, Argélia e Namíbia; e se posicionou contra os estereótipos impostos a homens negros pelas indústrias fonográficas e de entretenimento.
Adicionalmente, a tela do palco italiano ganha novas camadas a partir da tela do cinema. Essa tela, que detalha e expande narrativas concretas e simbólicas, é um traço característico dos trabalhos anteriores do diretor Ricardo Alves Jr., explorado em peças como Sarabanda (2015), codirigida com Grace Passô, e Tragédia (2019), do Quatroloscinco. O recurso também remonta à extensa tradição documental brasileira, tanto no cinema quanto no teatro das últimas décadas. A produção de Eduardo Coutinho, João Moreira Salles e Carlos Nader, no cinema, e da Zula Cia. de Teatro, Complexo Duplo e Cia. Teatro Documentário, nas artes cênicas, são alguns exemplos.
Nesse contexto, é como se Ricardo, paralelamente ao trabalho teatral, trouxesse uma outra forma de entender Marku, mais íntima, silenciosa, cadenciada pelos olhares e expressões sutis e misteriosas de Fátima Ribas, enquadradas em close-up. Uma história que não é apenas da arte e do país, mas também familiar e amorosa. A história que cada família conta ao seu modo, nos álbuns de fotografia e no que escolhe dizer a partir deles.
O fato de a peça ter sido produzida pela própria família de Marku não passa despercebido. Primeiro, pela abundância de materiais, que enriquecem a encenação como nenhuma outra equipe poderia fazer, mas também esbarra na dificuldade de edição e montagem desse material. Em muitos momentos, a função textual se mostra pouco criativa diante da exuberância dos números musicais, das atuações polivalentes, da riqueza da pesquisa coreográfica e de movimento, que bebe em fontes de matrizes caribenhas, africanas e ribeirinhas, ou do requinte dos instrumentos musicais tocados pelo próprio elenco.
Ao optar por uma cronologia linear e repetir alguns modelos dramatúrgicos do teatro musical, nos quais pequenas narrações rapsódicas vão intercalando ou comentando a cena musical, o texto nem sempre consegue acompanhar a diversidade sonora markuniana. Em certos momentos, falta ritmo no encadeamento da estrutura dramatúrgica geral – o que não acontece nas cenas isoladas. Embora parte do texto seja criada a partir da autobiografia de Marku, esse texto literário, pelo menos como está posto em cena, a partir de certo ponto, soa previsível diante da vivacidade da percussão e da vanguarda sinestésica atingida por Marku (e também pelos músicos da peça) em seus poemas musicais.
O segundo ponto é que, ao longo da história da arte, sempre houve discussões sobre o controle das imagens dos artistas ou sobre a forma como suas respectivas famílias optavam por contar a história do retratado. Na música, exemplos disso são o recente filme Back to Black (2024), sobre Amy Winehouse; o filme biográfico I Wanna Dance With Somebody: A História de Whitney Houston (2023); trabalhos sobre Madonna, como a cinebiografia em produção e os anteriores Na Cama com Madonna (1991) e I’m Going to Tell You a Secret (2005); ou as obras audiovisuais lançadas no Brasil sobre Gal Costa, O Nome Dela é Gal (2016) e Meu Nome é Gal (2023).
É claro que a história de Marku Ribas possui particularidades que não se encaixam nesses exemplos citados. Sendo um homem preto, do norte de Minas, Marku viveu períodos profissionais de profundo silenciamento. Ao escolher não se adequar às normas mercadológicas, o artista não recebeu o devido reconhecimento por seu trabalho sofisticado, politicamente engajado e de excelência estética. Sendo assim, se não fosse contada pela própria família, quem contaria essa história? De que forma a contariam? Haveria justiça ao seu legado ou uma tentativa póstuma de estereotipação e sucesso comercial?
Nesses casos, temos apenas uma conjectura hipotética. O palpável é que, ao ser trazida à cena pela família, a história de Marku é celebrada de forma mítica, deixando as contradições a cargo da sociedade e da indústria, e apresentando, de maneira idílica, o pai, o marido, o músico amado por quem o conheceu nos palcos e nos discos. Estive com Marku em algumas ocasiões e, inquestionavelmente, ele era uma pessoa doce, interessada por quem estava ao seu redor, e carismática. As entrevistas em vídeo, disponíveis na internet, também congelam essa figura sã, alegre e criativa. Mas, ainda assim, quais contradições poderiam apresentar um Marku mais dialético e, portanto, humano?
A escritora Cidinha da Silva, por exemplo, destacou: “Para mim, sua música é irretocável, não digo o mesmo das letras, principalmente pela forma estereotipada como apresenta as mulheres, isso me incomoda”. Queiroz e Bocskay pontuam que “Coisas de Minas demonstra machismo quase velado (porque não se escuta com tanta clareza), da ordem de um conservadorismo que destoa das inovações que ele articulou.”
No entanto, fica nítido que apresentar as contradições de Marku não foi o desejo de sua família. O teatro, visto por muitos como a arte do encontro, amalgama em seu escopo uma série de afetos que não necessariamente apresentam uma versão distanciada e crítica daquilo que se encena.
Na sessão a que assisti, houve um problema técnico que impossibilitou a apresentação da última cena – fato que passaria despercebido, não fossem conversas com a equipe no pós-espetáculo. No que foi estreado, o personagem Marku termina sua jornada voltando para a natureza, para um trono de folhagens, que representam a memória de seus ancestrais e da comunidade, assim como o crescimento, fortalecimento e regeneração da vida. É revelado que Marku também teve suas cinzas retornadas à natureza, fundindo novamente o homem às suas águas profundas, suas correntezas e barrancos.
Ao fim da peça, a imagem que permanece é a de um Marku artisticamente múltiplo e prolífico, que escapa a delimitações simplistas. Segundo Queiroz e Bocskay, o artista “foi um dos que melhor utilizou e expandiu, no Brasil, a técnica vocal scat, batizada de ‘canto onomatopaico’ pelo próprio, assim como da percussão corporal, que recebeu a alcunha de ‘polirritimia’.” Esta produção destaca não apenas seu dinamismo artístico, mas também sua relevância política e cultural, abordando seu papel em movimentos pan-africanos e sua contribuição no contexto da diáspora negra. A encenação celebra sua vida e obra, oferecendo um retrato íntimo que reflete tanto sua trajetória pessoal quanto seu impacto coletivo. Aos que compartilharam experiências com ele, é uma homenagem vigorosa; para os que não cruzaram seu caminho, é um convite a explorar a profundidade de um artista singular.
Referências
QUEIROZ, Rafael Pinto Ferreira de; BOCSKAY, Stephen. Marku Ribas: encruzilhadas afrossônicas através da diáspora. Afro-Ásia, n. 61 (2020), pp. 228-269.
Ficha técnica
Direção: Lira Ribas e Ricardo Alves Jr.
Direção musical: Julia Ribas e Marcelo Dai
Elenco: Alexandre Massau, Lira Ribas, Júlia Ribas, Fatão Ribas e Ìdòwú Akínrúli
Operação de câmera: Gabriel Mendes
Dramaturgia: Allan da Rosa e Marku Ribas
Pesquisa dramatúrgica: Rafael Queiroz
Dialoguista: Raysner de Paula
Direção de movimento/ Preparação corporal: Fernando Barcellos
Preparação vocal: Júlia Ribas
Direção de arte: Mariana Rocha e Patricia Batitucci
Figurino: Luiz Claudio da Silva
Iluminação: Marina Arthuzzi e Tainá Rosa
Produção executiva: Nina Bittencourt
Direção de produção: Sirlene Magalhães
Produção: Nina Bittencourt e Entre Filmes
[1] 2020, p. 234.