Há um padrão que se repete em “Vizinhos”, já visto nesta edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo no espetáculo “Um Café da Manhã”. Novamente estão o homem e a mulher em cena a cumprir suas atividades diárias e representar por meio de números circenses o doce e o amargo de uma relação. O caráter arquetípico dessa estrutura em comum requer uma afinação entre intenções e movimentos, além de alguma ruptura de expectativa do desenho modelar de um vínculo a dois, para superar a trivialidade e o esquematismo da equação “casal se conhece, se ama, briga e se separa”.
“Um Café…”, embora siga milimetricamente essa conta, faz o casamento das ações corporais à narrativa da vida por meio de metáforas sugestivas, mas bastante claras, das quais é possível depreender uma história delineada. “Vizinhos” já se move por uma dramaturgia mais aberta e difusa. Apesar de o título atribuir aos performers Maíra Campos e Daniel Pedro a relação de moradores de um espaço contíguo, as fronteiras não evidentes e a comunicação restrita à pantomima deixam o que se vê em cena no limite de uma relação de casal, para a qual de fato evolui.
No início a teatralidade é determinante do modo como cada um ingressa em cena investido de um personagem, num registro cotidiano que até estranha a corda amarrada no meio do apartamento. A cena só recusa o realismo pela decupagem de movimentos em marcação sincopada ditada pela música, a dança então prepondera entre as artes do corpo em jogo. Mas o elemento circense já se revela em detalhes, como a sombra na forma de uma lona de picadeiro projetada ao fundo e os cabelos armados de Maíra, uma imagem clownesca, assim como nas pequenas subversões de modos extracotidianos de realizar atividades como comer macarrão.
A arte circense explode quando a dupla envereda pelo equilibrismo e o corpo dela assume formas esculturais suspenso sobre a base de apoio dele, em momentos de intensa plasticidade. Logo se percebe que o espetáculo do projeto Artinerant’s está menos interessado na grande narrativa do que em compor breves momentos de representação da interação relacional entremeados pela demonstração da habilidade circense.
Disparados por ações teatralizadas, como o trocar de roupa sobre a corda-bamba, os números se estendem até que se desfaça o laço com a motivação originária e reste, em primeiro plano, a técnica. O desenho das ações, então mais impreciso, destitui-se do potencial simbólico. Vemos como Maíra é capaz de realizar uma abertura total de pernas sobre a corda bamba, girar em torno do eixo do quadril ou escorregar sobre o fio suspenso, por exemplo. O risco, a flexibilidade, a destreza e o equilíbrio sobrepõem outros sentidos possíveis.
Pode-se dizer que assim o circo ganha certa autonomia, sem que a dança e o teatro o sujeitem. Ao mesmo tempo, entretanto, está limitado a esses bolsões como respiros antidramáticos, numa estrutura que se tornará mais tributária da narrativa fabular em sua etapa final. Músicas como a versão flamenco-melancólica de “Você não Vale Nada”, cantada por Tiê, redimensionam a cena para um figurativismo atribuidor de sentidos imediatos, ao que o uso de máscaras como a de gado e de coelho convertem em uma atmosfera nonsense.
Depois de um início potente pela relação corpo-tempo-espaço-som, e certa indefinição posterior entre assumir a autonomia circense, investir na fábula ou encontrar o justo entrelaçamento de ambos, esse traço surreal confere novo vigor ao espetáculo, aquela ruptura com o esquema-padrão do romance à qual se fez menção no início deste texto – e ainda adiciona uma camada de humor.
Tal atmosfera se desfaz, contudo, perante a intrusão de uma gravação que comenta levianamente a relação conjugal entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, reduzindo os dois à anedota de amantes libertinos e cruéis – e nisso desconsidera em absoluto a produção intelectual de ambos que está intimamente ligada à esfera da sexualidade e da liberdade. Com essa recusa à complexidade do pensamento, a simplificação do comportamento do célebre casal se insere como uma legenda que tentará fechar os sentidos de leitura do espetáculo. Ainda em off, uma frase como “o ser humano só se safará se ao passar a mão no rosto reconhecer a própria hediondez” não encontra sustentação no que se viu até então em cena, e ainda aponta para uma desnecessária conclusão moralizante.
*Espetáculo visto em junho de 2015, em São Paulo.