— por Joyce Athiê e Soraya Martins —
Havia certa expectativa quanto ao mais recente espetáculo do Grupo Espanca!. Um novo trabalho sempre cria expectativas, especialmente, quando os anteriores atingem certo patamar de qualidade. A superação é sempre esperada, uma cruel realidade de qualquer área artística. Mas, no caso do Espanca!, também outras razões despertavam curiosidade sobre o que viria a ser “Dente de Leão”, primeiro espetáculo do grupo sem Grace Passô, uma das fundadoras do coletivo, em que desempenhou os papéis de atriz, diretora e dramaturga.
“Dente de Leão” vem com elementos novos, a começar, então, pela equipe. Marcelo Castro deixa de atuar para ocupar o cargo de direção pela primeira vez e Assis Benevenuto é convidado a pensar a dramaturgia, em um trabalho tão processual e integrado quanto ao que o grupo estava acostumado a fazer, entre escritas e salas de ensaio. No elenco, Gustavo Bones é único representante do Espanca! em cena e a ele, como também já havia acontecido em outros espetáculos, se juntam outros atores: Alexandre de Sena, Gabriela Luiza, Gláucia Vandeveld, Lira Ribas e Raysner de Paula.
Com todo esse conjunto de inovações, não seria surpresa que algumas diferenças fossem notadas, e a primeira delas, que dá todo o tom do espetáculo, é a estrutura da narrativa que, em meio a camadas, concatena e dá lógica a uma série de ações, aproximando-se de uma construção fabular, com uma história a ser contada marcadamente com início, meio, até chegar ao fim, em uma escala dramática cada vez menos frequente no teatro contemporâneo e nos últimos trabalhos do grupo.
Essa escala diz de um crescente que, no caso de “Dente de Leão”, desenvolve-se com aparente ingenuidade, com uma sutil apresentação dos núcleos que compõem a história e aos poucos vão tendo suas relações desveladas, até chegar ao momento catártico da revelação do conflito. O que estamos apontando como uma diferença refere-se a uma preferência por uma estrutura mais tradicional que costura suas ações a partir de uma lógica de causa e efeito, agenciando as ações em progressão crescente até se chegar ao clímax, ao problema e a sua consequente resolução, chegando, inclusive, à moral da história.
Ao que se via anteriormente, a opção adotada no novo espetáculo contrapõe-se a uma forma narrativa mais fragmentada, menos fechada e focada em um conflito propriamente dito. A estrutura dramática empregada no espetáculo preza pela coerência; por uma unidade entre os núcleos que estabelece; por uma orientação que, como em um thriller, em seu aspecto formal, dá ao público gotejantes peças para a construção de um todo linear e coerente. É como um convite ao espectador para que ele siga suas pistas, e este, enquanto as segue, vai arrematando os pontos, já consciente e à espera do “x” da questão.
A ingenuidade dita acima está relacionada com essas pequenas pitadas de uma história. O texto de Assis Benevenuto cria ambientes onde os personagens se relacionam em núcleos, estabelecendo em alguns momentos travessias e conexões: a casa da família, a sala dos professores e o espaço dos alunos, sendo que professores e membros da família são interpretados pelos mesmos atores que se dividem em diferentes personagens. As primeiras entradas, carregadas de dados e descrições aparentemente inúteis, como o escaninho enferrujado, a escova de cabelo, dão a conhecer espaços e papéis que, aos poucos, serão desenvolvidos.
Também o aparentemente inútil pode ser explicado. Nestes dois núcleos, família e escola, parece haver uma opção por figuras mais caricatas. No âmbito familiar, superficialmente comum, pai, mãe e filhas fazem uso de pequenos elementos que se tornam assunto de diálogos bizarros que levam a uma incomunicabilidade dos mesmos. No núcleo escolar, professores conversam frivolidades e se mostram tão enferrujados quanto os escaninhos da sala. O caricato dos personagens está além das interpretações exageradas, está no nascimento dos personagens e na concepção do que eles têm a oferecer para a história.
Dessa forma, embora redutora, a fôrma caricatural empregada no espetáculo vem a serviço para revelar a exacerbação dos absurdos enfrentados na precariedade do sistema educacional público e nas relações familiares onde cada um desempenha o papel esperado socialmente. O caricato não aprofunda, não complexifica. Aplaina as multiplicidades dentro de um sistema social que abarca diversas formas e possíveis angulações. Mas há nisso tudo uma função: ironizar dois núcleos essenciais – teoricamente – para a formação humana e cidadã de qualquer indivíduo: a família e a escola.
O irônico reside, portanto, na desconstrução desses dois lugares. No espaço familiar, lugar de sociabilidade primeiro, cada membro se fecha na representação do seu próprio papel. As interações são rasas e representam uma forma banalizada de estarmos no mundo: todos falam e ninguém se ouve. Nos diálogos tumultuados, o que menos se tem é a intenção de dialogar e estabelecer relações que ultrapassam essa superficialidade. Em uma recorrência, para falar da incomunicabilidade humana, entram em cena recursos bastante usuais: a torre de babel, os personagens centrados em suas histerias e a incorporação dos aparelhos celulares do cotidiano.
No núcleo escolar, o lugar criado fundamentalmente para estimular o conhecimento, desenvolver uma visão crítica e um olhar criativo sobre as relações que nos cercam, o que se vê é o movimento que vai na contramão desses propósitos. Os professores, como se fossem alheios, criticam um sistema escolar, metáfora de uma engrenagem histórico-social maior, sem se enxergarem como parte integrante dessa estrutura viciada de que eles corroboram para a manutenção. O espaço comum dos anos escolares, a Feira de Ciências, momento interdisciplinar de final de ano em que se espera que todo o conhecimento adquirido borbulhe e exploda como sal de frutas em água, acaba por se tornar o burocrático lugar dos Belmiros que se foram e dos por vir. É a perpetuação do mesmo.
Embora, em análise, a opção pelo caricatural se revele coerente e objetiva, como sustentamos, na prática que se realiza diante do público, ela desperta certo incômodo no esvaziamento dos personagens e na consequente interpretação de figuras. Não se trata aqui de uma referência aos trabalhos dos atores, que entram no jogo da brincadeira do exagero e do ridículo, mas da própria opção por construir sujeitos aplainados em características marcadamente determinadas.
Para a deflagração dos absurdos, o espetáculo faz uso de uma ferramenta essencial: o humor. Mais direto e aberto do que outras investidas no riso que o grupo já empreendeu, como em “Congresso Internacional do Medo”, o exagero de “Dente de Leão”, um tom propositalmente acima e a liberdade para “cair no ridículo” levam o público a boas risadas. Não há quem não se divirta com o inglês estridente da personagem de Lira Ribas.
Mas esse humor ultrapassa a simples leveza da diversão: tenta deslegitimar discursos e práticas opressoras que se escondem por trás do próprio riso. Quando rimos das mentiras e da picaretagem do professor Andrey, estamos rindo de nós mesmos, mas, ingênuos (eu-público), pensamos que estamos rindo do “outro”. Pouco a pouco, vamos percebendo que não existe o “eu” e “outro”, mas sim um “nós” que compartilha o mesmo barco. O “outro”, antes motivo das nossas risadas, é figura de nós mesmos. Somos também parte do todo maior que é a sociedade, também encenamos os nossos papéis e, mais, estamos em busca de uma encenação magistral, que nos camufle debaixo de convenientes máscaras.
Rimos um riso amarelado, que incomoda porque nos mostra o quanto somos oprimidos por um sistema de práticas que diz que temos que trabalhar não numa empresa de telefonia, mas em um “callcenter”, que se não nos engole, nos manipula com uma força de leão a ponto de não pararmos e percebermos que a nossa atual maneira de estarmos “in” é o “iogurte todo dia de manhã. Escola durante o dia. A gente matando aula. Apresentar vulcões na Feira de Ciências. Os professores cansados de dar aula. O dia depois da noite. As estações… Saca?”. E em qual momento do dia nos perguntamos o que estamos fazendo das nossas vidas? Rimos quando a mãe, o pai e/ou os professores não sabem como responder a essa pergunta retórica, o riso é amarelado porque, no fundo, a gente-público também não sabe.
O núcleo dos estudantes, formado pelos personagens Cintia, Igor e Chico, se revela mais interessante que os demais. É neste espaço que o caricatural se apresenta com menor dosagem. Apesar do comportamento tipicamente adolescente, há neste ambiente revelações e surpresas. É aqui que a história ganha movimentos e contornos. Após a gradual caracterização e exposição dos núcleos e dos personagens que se tornam conhecidos, um salto abrupto se instaura na escala dramática, que sai do estado de aparente estabilidade. O vulcão entra em erupção a partir de uma utópica revolução pretendida, claro, pelos estudantes.
Como uma rasteira nos professores, nos familiares e no público, os alunos expõem a representação dos papeis a que todos estão submetidos e se lançam em uma tentativa de rompimento com o estabelecido, não só no campo escolar, mas também em uma esfera mais ampla que alude à acomodação e à inércia social. Cabe aos jovens uma quebra de ciclos viciosos e representações protocolares. O jogo metateatral se faz presente não por coincidência. Ele revela a constante encenação de paradigmas comportamentais que nos levam a cumprir funções que nos são colocadas, como a mãe que, apesar das suas preocupações banais, está no lugar da pessoa amável e protetora, afinal, o que mais se espera de uma mãe?
Na direção contrária a essa constante representação, os alunos investem em uma nova forma de jogar e explicitam os percursos seguidos por uma massa guiada por correntes e fluxos que impõem uma série de padrões, entre eles, a estética corporal, o domínio de uma língua imperialista e o sucesso profissional. Nessa correnteza, não há espaço para refletir e se perguntar que caminho estamos seguindo, ou ainda, quais trilhas queremos percorrer. A reflexão é silenciada pela conformidade com o previamente definido.
Voltando à estrutura dramática, quando o jogo está armado e tudo parece estar a caminho de um desfecho, vem a segunda rasteira, momento surpreendente onde parece que o plano dos estudantes deu errado. Mais uma guinada na tensão espetacular. Parece que algo foge ao controle, e Igor, estudante e filho de uma imigrante latino-americana, toma as rédeas de uma situação, respondendo com violência toda violência sofrida, empreendendo-se, à sua maneira, em uma busca pela transformação.
A guinada formal da narrativa – que aqui, informalmente, chamamos de rasteira – é também o “turning point” para a introdução mais densa de outra esfera de discussão do espetáculo. No âmbito das representações, entra em jogo o preconceito, esse outro elemento travestido em máscaras neutras.
A princípio, são três adolescentes que vivem em um mesmo universo, onde a amizade faz com que as diferenças socioeconômicas pareçam irrelevantes. Embora haja recorrentes brincadeiras entre amigos, que remetem à origem não brasileira de Igor, a convivência é entre iguais.
Bruscamente, no entanto, as individualidades e os contextos emergem, fazendo com que o público, ao olhar para Igor, veja em si o preconceito escondido debaixo do tapete, como se não existisse, ignorado por conveniência. Filho de boliviana, paraguaia, peruana ou colombiana, a nacionalidade não importa frente a uma superioridade míope dos brasileiros em relação a seus vizinhos.
Dessa forma, a começar pela origem, Igor é tido como o detentor de menores privilégios. Como um processo “natural”, a ausência materna o leva a ser o aluno repetente, dá a ele a chancela de má companhia para os demais estudantes que, aparentemente, cresceram dentro de um aparato familiar “normal”. Logo, a ele é relegada uma herança social de quem nasceu para dar errado.
Por causa desse contexto, é esperado que Igor se rebele até mesmo contra os colegas. Novamente, quando se espera um desfecho, dessa vez mais trágico, somos surpreendidos uma terceira vez com a revelação das armações dos jovens estudantes.
Ao final, como pede uma estrutura fabular, fica uma mensagem para levar para casa. Cintia, a estudante responsável por incitar a mudança e o pensamento revolucionário, é o retrato do jovem, o vento que sopra, que tenta mudar de direção e acaba por se tornar o símbolo de uma utopia fracassada. Já no começo do espetáculo que incita o metateatro, ela é a personagem responsável pelo olhar crítico que aponta para a mesmice, para a vida previsível que as pessoas levam. É ela que evoca o “Teatrinho das Estações”, que nada mais é do que o teatrinho cotidiano da vida onde todos somos personagens e que representa o ciclo ininterrupto – do outono, da primavera, do verão, do inverno, do outono, da primavera… –, que expõe tanto as repetições quanto a representação de papéis a que nos referimos anteriormente.
Ela é um personagem-vagalume, a luz e a possibilidade de renovação. É ela quem consegue ativar minimamente um “princípio da esperança” em Chico, Igor e nela mesma: lança uma luz particularmente viva sobre a realidade procrastinada do seu núcleo familiar e escolar. O desejo por fazer diferente a encoraja, a faz questionar por que todo dia fazemos tudo sempre igual, e a impulsiona a realizar, dentro de uma microesfera da sua escola pública, uma ação política com as próprias mãos.
Apesar da inquietação por mudança, Cintia repete o lugar social da família a que tanto criticava. Nesse sentido, a estrutura fabular se mostra carregada de uma dureza contrária à ingenuidade dos adolescentes que guia o espetáculo. A referência ao que cantou Elis é inevitável.
Se falávamos em diferenças ao início deste texto, ao fim, apontamos para uma marca que permanece mesmo com tantas transformações: “Dente de Leão” também espanca docemente. O doce vem da inocência do adolescente e da criança que, ao final, brinca de representar e faz seu teatro imaginário. Espanca porque mostra a violência de construções sociais cruéis vistas com naturalidade, o preconceito com o diferente subjugado, o descaso de um sistema viciado que não poupa professores e alunos.
Por isso, “Dente de Leão” é esse duplo: é o que arranca, despedaça, faz sangrar e, ao mesmo tempo, é o que voa com o vento, um algodão doce.