– por Luciana Romagnolli — Crítica do programa triplo de cenas curtas “O que Não Vaza É Pele” + “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras” + “Rolezinho”.
A escrita da crítica comporta uma dimensão de curadoria quando se elege sobre qual trabalho derramar o tempo daquele que tenta capturar o pensamento com as palavras e daquele que lê; quando se considera para o que se convoca a atenção. É, portanto, um trabalho sobre a partilha do visível e do legível, cujos limites se desenham também pelo que alcançou nossos olhos. Essa compreensão impulsiona a desobedecer a lógica do calendário e retomar criações fora de cartaz, desafiando o efêmero teatral.
Retorno, então, a um acontecimento de 2015, a apresentação conjunta das três cenas curtas dirigidas por Alexandre de Sena: “O que Não Vaza É Pele?”, “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras” e “Rolezinho”. A proposição de uni-las numa sequência temporal diante do público foi feita no contexto da Ocupação Conexões, na Funarte-MG, em curadoria assinada por mim e Soraya Belusi. É a partir desse lugar sobreposto de crítica e curadora, redundante na medida em que se entrecruzam essas duas visadas sobre o teatro, que este texto é escrito.
Fotos de Guto Muniz e Dila Puccini (“Rolezinho”).
Apresentado o contexto, vamos às cenas. Nos três projetos, distantes entre si um ou dois anos no intervalo de criação, questões sobre a presença e a representação do negro na sociedade movem o gesto teatral por um território instável de construção ficcional sobre o real. Um tipo de elaboração que, mesmo quando fabular, busca não o apagamento, não o sobrepor-se à dimensão da realidade cotidiana, mas posicionar-se em relação a ela, a partir de uma pressuposição do real e do ficcional como par não dicotômico. Daí a importância do jogo da presença física com o efeito de presença da mediação tecnológica, a perpassar as cenas em experimentos de linguagem que se filiam ao gesto contemporâneo de investigação da arte e do mundo por meio do tatear e do variar de formas.
“O que Não Vaza É Pele” (de 2013) responde cenicamente a um episódio real de violência policial, racista, sofrida por Alexandre de Sena na cidade catarinense de Blumenau. A cena apresenta-se ao espectador em seu processo de organização, sem pressa, enquanto Alexandre, Jésus Lataliza, Byron O’Neil e MC Matéria Prima negociam entre si esse início, trazendo a dimensão da feitura aos olhos do público, como a afirmar o aspecto de construção do que se vê sobre o palco, e estabelecendo uma ética coletiva do afeto, consolidada por um abraço entre todos. Nessa atmosfera descontraída, sem alarde, vemos Alexandre destacar-se do grupo e tatear-se, sentindo o próprio corpo, a materialidade e a textura da pele, da orelha, enquanto nos implica, espectadores, pelo olho no olho. Silenciosamente, investiga a própria presença diante de nós, e o endereçamento do olhar faz-se vetor de uma indagação sobre aquele corpo negro. De cor impalpável.
O ocorrido em Blumenau então é elaborado em uma fábula sobre uma terra onde tudo é branco, mas entre os tons de branco há hierarquizações, e a chegada de um indivíduo colorido gera uma ruptura com a lógica local. A materialidade da presença dá a vez à simbolização, por uma reescrita da experiência que encontra na analogia a ferramenta para a “passagem de asserções facilmente identificáveis para outras de difícil constatação” (eis a definição dicionarizada no Houaiss). O tratamento infantil empregado por Byron à curta narrativa constrói o “facilmente identificável” a partir do qual transpõe a compreensão a uma realidade mais complexa, e evoca o absurdo – marca da linguagem dele como dramaturgo – da manutenção do racismo na atualidade. Além disso, a comunicação dessa narrativa se faz pela soma de vozes dos atores, superpostas, outra vez a apontar para a inserção do indivíduo dentro de um coletivo.
Com estratégias associadas ao teatro documentário, tais como o depoimento pessoal e a anexação de documentos – uma reportagem jornalística produzida pela TV local daquela cidade e o laudo médico atestando a perda de audição decorrente da agressão –, a cena faz-se espaço e tempo de problematização dos modos de construção da realidade. Como se configura a percepção do que é a “norma” e do que é diferente? Como se lida com a diferença? Como se distribuem os lugares de fala e por quais discursos se instauram as exclusões e se perpetua o racismo? É nas fricções entre os materiais cênicos reais e ficcionais que opera um processo de desnaturalização do racismo arraigado num contexto cultural.
Nas distintas linguagens convocadas, reside uma negação à síntese: a diferença como forma. Arestas e vazios entre os materiais postos em cena exigem trabalho do espectador. A dimensão do espetáculo cabe à pequena televisão ligada a exibir a reportagem, o vídeo não domina o palco, é um elemento acionado que tem seu justo tamanho e lugar numa cena que recusa a imagem espetacular em favor da artesania dos corpos. Eis o embate quando o representante oficial da polícia torna-se o entrevistado, com mais tempo de tela do que fora dado a Alexandre. Este retoma a performance sobre o corpo, a investigação da própria pele, com reações mínimas, a pontuar por contraste o discurso do vídeo. O corpo desafia a representação, aponta suas falhas, afirma sua força. Sob a meia luz, vemos um homem tornar pública sua ferida, a ferida de uma população numerosa e, como ele, pouco visível.
O que se segue é um gesto relacional, a entrega do laudo de várias páginas para ser lido por um espectador. A distância atribuída ao lugar do espectador – aquele que vê – é substituída pela inclusão desse outro, numa espécie de utopia de proximidade, ou de convívio, sobre a qual se funda a ética de certo recorte do teatro contemporâneo. Assim como em “Rolezinho”, o lugar do ator é profanado, no sentido agambeniano. Nessa entrega do texto concretiza-se, então, também o gesto de “dar voz”, “tornar visível” aquilo que, no regime clássico do teatro, permaneceria silencioso e oculto.
Ainda que as palavras estejam fixadas no papel, a autonomia do espectador ao lê-las abre possibilidades inesperadas. Numa sessão, foi possível ver a mulher branca, a quem o texto foi dado, recusar a função recebida e agir uma nova escolha ao repassar as páginas a outra, negra, cuja leitura foi atravessada pela emoção, com reações muito aparentes, que intensificaram e transformaram o poder de afetação coletiva daquela performance, fazendo da plateia o espaço privilegiado de sensibilização.
Sobre a segunda cena, “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”, permito-me retomar o que escrevi na ocasião de sua primeira apresentação no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em 2014 (texto inédito neste site; quem já o leu pode seguir para além do itálico):
“Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”, mais que um título, é um posicionamento político muito claro dos artistas Alexandre de Sena, Igor Leal e Will Soares, a partir do qual fazem do teatro um espaço de ampliação da experiência subjetiva e social do indivíduo para além das normatizações do status quo, um palco de elaboração imaginária e real do sujeito que mira a diversidade e a liberdade, deslocando construções culturais cristalizadas para dar lugar central às experiências ainda marginais.
A periferia. O negro. O gay. Postas assim, essas palavras de poucas letras suscitam toda uma ordem de relações intersubjetivas, econômicas e sociais complexas, que acionam nossa construção coletiva de sentidos a partir de categorizações dentro do espectro do que a norma social permite ver, ao mesmo tempo que exclui toda uma infinidade de possibilidades de ser contidas em e entre essas palavras, mas condenadas à não-representação, à invisibilidade social. É justamente no entre, sobre, por, ante, trás, desde – e outros intervalos de fricção – desses três universos que a dramaturgia da cena ergue-se, como um acumulo de camadas que mantém visível o aspecto composicional, de montagem, pelo qual as arestas não se apagam e as tensões ficam às vistas do espectador, incitado a trabalhar criticamente na construção de sentidos.
Concretamente, isso dá-se em cena por uma soma de signos inesperados na mesma paisagem. De início, o prólogo arma uma situação convivial lúdica – análoga à construída pela cena “O Aniversário da Didi” em procedimento e intenção. São entregues bexigas aos espectadores, que as enchem, jogam para o ar e, impulsionados pelo exemplo de um dos integrantes da cena, as estouram. Logo em seguida, os atores entram em cena para uma espécie de segundo prólogo (inspirado em “As Moscas”, de Sartre”) que nos situa no ambiente da periferia, onde ouve-se os ruídos da morte: o som do tiro ecoa a explosão das bexigas enchidas e estouradas pelos espectadores, implicando-os sutil mas incomodamente na violência por meio da analogia. Enquanto isso, no telão ao fundo, emergem nomes reconhecíveis de casos reais de violência urbana vinculada ao racismo, à homofobia e à truculência policial. Camadas – as bexigas, os atores, os nomes – que só se cruzam na consciência do espectador.
A grande quebra de expectativa, porém, instaura-se quando o ator Will Soares dubla o rap “O Homem na Estrada”, do Racionais MC’s, cuja letra faz um discurso muito direto sobre a realidade da periferia. A dublagem é feita como um show de Drag Queen. Porém, vê-se a disjunção do que o rap narra e o rosto dele expressa, de um lado, e a própria prática do lip sync e a dança performada pelo corpo do ator, identificadas ao universo das divas Drag, por outro. Durante a apresentação, essa tensão entre universos aparentemente inconciliáveis torna-se cada vez mais forte pelo emprego desestabilizador de signos da cultura heteronormativa, como a camisa de time de futebol e a lata de cerveja, ressignificados no uso pelo corpo tipificado como gay. Esse choque de mundos explode num “big bang” que inaugura uma outra imagem possível de gênero, sexo, subjetividade, já fora de qualquer dicotomia. Inaugura um imaginário: faz visível o invisível.
O processo criativo da cena funda-se sobre a teoria queer conforme formulada por Judith Butler, pensadora que reconduz a discussão de gênero para a posição de manutenção de uma ordem social estável e compulsória, sustentada na dicotomia masculino x feminino, dentro de uma lógica de pensamento binário mais ampla da sociedade ocidental, e segundo a qual a perpetuação da heterossexualidade e desses papéis fixos se daria pela performatividade: a repetição de gestos e signos que constroem culturalmente o ser homem e o ser mulher, de modo tão internalizado e aparentemente incontornável que pareça ser uma questão biológica.
É, portanto, na forma que produz o preconceito que a cena opera, subvertendo-a por meio da performance de gestos e signos outros, irredutíveis a dicotomias ou gêneros pelo modo como são apresentados em fricção, em atrito, mas inseparáveis. Numa sociedade tão afeita a regrar modos de ser em todas as esferas da experiência humana, essa abertura do olhar – e de possíveis – através de uma elaboração artística que igualmente rompa com a dicotomia forma e conteúdo fazendo de ambas espaço de atuação política, faz-se urgente e necessária.
Quanto ao “Rolezinho”, revisito ideias agora ampliadas sob a perspectiva da justaposição das três cenas. Um dos aspectos mais significativos de construção desse trabalho é a convocatória pública de artistas negros da cidade de Belo Horizonte, por meio das redes sociais, para “promover rolezinhos de criação e ensaio em locais públicos”. Some-se a isso a escolha de uma adolescente, sobrinha de Alexandre de Sena, como porta-voz das ações realizadas no Festival de Cenas Curtas e na ocupação Conexões, ambas em 2015. Nessas formas de compor o grupo criativo, arrisco perceber uma lógica semelhante à da inclusão de não atores em espetáculos contemporâneos como os do coletivo alemão Rimini Protokoll [1].
Explico: mesmo quando são artistas os convocados, a lógica que os move é a de ocupação de um território do qual estão apartados, o palco. O teatro não é lugar de exceção, mas parte integrante de um contexto sociocultural de exclusão do homem negro e da mulher negra. O gesto, portanto, responde à mesma crise da representação, cujos desdobramentos são múltiplos e atingem a forma dramática alargada pelo reforço da performatividade, mas diz também dos modos como grupos humanos são sub-representados não apenas na política no sentido estrito, mas também nas artes – e, consequentemente, no imaginário socialmente elaborado e partilhado.
A cena afeta esse imaginário mais uma vez agindo sobre o regime corrente de imagens nas artes, entre a negação da produção espetacularizada (como em “O que Não Vaza…”) e a instauração de imagens outras (como em “Não Conte Comigo…”). A escuridão e o palco vazio abrem esse espaço para que ecoem os sons do mar, a evocar o fluxo migratório de negros para o país no contexto escravocrata, e os sons de vozes distantes entre as quais se ouvem palavras como “dignidade”. A entrada da garota vinda da plateia, com smartphone e joelheiras, a afirmar o seu lugar de origem, o seu tempo e a necessidade de proteção, e seu manifesto poético dito ao microfone situam na geração mais jovem e na mulher negra a potência de transformação – não apenas aquela ainda a ser feita, mas a já em curso. “Eu vim de lá e sei que você não me conhecia”… “há 500 anos estou aqui e ninguém me vê”… “eu não sou mais criada, é necessário que eu diga”… “eu vou criar um mundo aqui”… “eu faço parte dele também, por mais que você não me veja”… E então o grito: energia que presentifica o atravessamento do passado ao presente, do um ao outro.
Resiste, no modus operandi do “Rolezinho”, algo ainda da lógica dos “especialistas do cotidiano” com os quais trabalha o Rimini Protokoll, na medida em que os corpos estão presentes em cena em razão de portarem conhecimentos outros além da atuação: a especialização é a da experiência da vida; a representação, não de um papel ficcional, mas de um papel social. Quando se discute, hoje, nos movimentos sociais a questão do lugar de fala, um ponto essencial é essa espécie de saber que só a vivência gera, uma memória corpórea. Por isso, a centralidade do corpo, de estar presente, de dar-se a ver. Outro modo de abordar essa questão frequente no teatro contemporâneo é pensar que, quando a dimensão de não ator do próprio ator ganha visibilidade, permite justamente a emergência dessas vivências – caso de “O Que Não Vaza É Pele”.
Neste ano, o Xº Encuentro do Hemispheric Institute of Performance and Politics propõe-se a investigar justamente o eX-cêntrico: “aquilo que se distancia, nas periferias do poder —como o local da identidade, da luta, da criatividade e do poder político”, buscando “explorar a política e a estética gerada a partir do exterior, que marca a sua distância e a falta de desejo de ser inscrito em códigos dominantes, desestabilizando o senso comum e desordenando os planos do possível”[2]. É possível reconhecer nessa proposta de mapeamento de certa produção contemporânea o território onde se inscrevem os três trabalhos dirigidos por Alexandre de Sena. A performance, enquanto gênero ou como contaminação sobre a linguagem do teatro, sobretudo por suas características fronteiriças e pela inscrição no corpo, reafirma-se como meio privilegiado de travessia da cultura negra tradicional a um teatro negro contemporâneo em que o adjetivo não seja restritivo.
Na cena teatral de Belo Horizonte, o que se vê cada vez mais é uma tomada de posição de artistas negros e negras, em busca de ocupar espaços de visibilidade por meio de uma arte em que a ordem da presença e a ordem do simbólico coexistam, complementares. Movimento semelhante ao de um teatro feminista, cuja força na cidade também é crescente; e os entrecruzamentos entre esses dois recortes são desejáveis para mútuas desestabilizações. Contudo, como é da natureza do conservadorismo quando ameaçado em sua hegemonia, a conquista de voz por mulheres e negros, ainda que permaneça minoritária no terreno teatral, gera reações contrárias como se fosse uma tendência passageira, um modismo, uma bolha de ar inflada pela crítica. Prefiro compreender esses movimentos como uma transformação maior no construto social, conectada à política no sentindo amplo e às outras manifestações da cultura, da maneira de ver, perceber e pensar o teatro e a sociedade. Conviver com o outro é preciso. Experimentar o deslocamento de ser o outro numa relação, também.
[1] Ver MENDES, Julia G. “Teatros do Real, Teatros do Outro: a construção de territórios da alteridade a partir da presença de não-atores em espetáculos contemporâneos”. In: Sala Preta, v. 13, n. 2, 2013.
[2]Texto do comunicado enviado pelo Hemispheric Institute of Performance and Politics aos inscritos no encontro que se realizará em julho, na cidade de Santiago, no Chile.