– Por Clóvis Domingos –
Crítica a partir do espetáculo Pai contra Mãe, da Cia. Fusion de Danças Urbanas
” Deus fez o mar, as águas, as crianças, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as armas, as putas. Eu? Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática, um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno”.
Mano Brown. Gênesis, 1998.
“Pai contra Mãe” é o nome de um conto do escritor Machado de Assis e também o título do novo espetáculo da Cia Fusion de Danças Urbanas de Belo Horizonte. Da publicação do texto, datada no século XIX, até sua tradução em linguagem de dança, o teor de revolta, denúncia e poesia se fazem presentes. Seja através da literatura como nas poéticas do corpo, o real é matéria bruta e cortante do dia a dia da população negra, num país cuja injustiça e desigualdade social não cessam de produzir chagas e feridas.
Ao trazer o desafio de ser negro e de ser mulher em uma sociedade ainda opressora, racista e misógina, sete corpos dançantes enfrentam com vigor, técnica e exuberância as cicatrizes abertas de um país escravocrata. Pois “se a escravidão ficou no passado, sua história continua a se escrever no presente. A experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação” (SCHWARCZ, 2015, p.14).
Uma dessas modalidades- o racismo silencioso– pode ser combatido e desmascarado pelo trabalho de simbolização e politização da arte, capaz de causar incômodo e mal-estar, podendo ainda gerar diferentes camadas de visibilidade e discursividade. No caso de “Pai contra Mãe” é quase impossível sair indiferente às imagens e sonoridades desse potente espetáculo-manifesto, no qual os corpos dos bailarinos, feito lâminas afiadas, dançam e gritam como se fossem “caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar a morte e a miséria” (KEHL, 2008, p. 97).
Danças indignadas. O espetáculo apresenta diferentes quadros vivos (“tableau vivant”), isto é: situações cênicas que, separadas e ao mesmo tempo interligadas, atualizam passado e presente: o porão do navio negreiro e o quartinho de empregada; as rodas proibidas de capoeira e as batalhas eletrizantes de break e rap; o capataz e a polícia; a senzala e o presídio (já que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, como já cantou Elza Soares, que inclusive tem uma das canções de seu último CD na seleção musical do espetáculo).
A escolha por bailarinos (Aline Mathias, Augusto Guerra, Isabela Isagirl, Jonatas Pitucho, Leandro Belilo, Silvia Kamylla e Wallison Culu) com corpos diferenciados também é um acerto, uma vez que cada singularidade não só expressa nos movimentos, mas nas criações e recortes temáticos (resultado de um processo colaborativo e com importantes provocações de artistas como Gil Amâncio e Alexandre de Sena). Isso acaba por aumentar a força e a multiplicidade da dança urbana, que, nesse espetáculo, realiza um encontro (será uma fusão?) promissor com a dança contemporânea.
O início do espetáculo com a formação de uma roda na qual os bailarinos se encontram sugere e tensiona diferentes leituras: um jogo de aquecimento físico do grupo para o trabalho a ser apresentado, ao mesmo tempo uma brincadeira infantil de rua, típica de qualquer localidade, e numa terceira vertente, o ato mimético de “matar” o outro e excluí-lo, o que para mim já sinaliza o território áspero no qual os futuros quadros se desenvolverão. Então as camadas artística, lúdica e de crítica social já se imbricam na instauração de um dispositivo brechtiano, isto é: uma coisa pode ser muitas coisas. Uma linha tênue entre aquilo que “diverte” e aquilo que “adverte”.
Outro quadro de forte impacto sobre a plateia: a abordagem policial. A excelente iluminação de Edimar Pinto consegue nesse momento trazer à tona a sensação de medo e vulnerabilidade e, entre claros e escuros, vemos a submissão de corpos estáticos e rendidos ao abuso autoritário daqueles que são pagos para proteger nossas vidas. Em contraste: a silhueta projetada na sombra dos movimentos de um solitário bailarino que “dança” entre os rendidos, como um ato de resistência, evocando a escuridão e anonimato do extermínio de inúmeros jovens pobres e negros nas comunidades periféricas. Não há como desviar os olhos daquilo que fere nossos sentidos. Nem tapar ou proteger os ouvidos das vozes habituais dos trabalhadores das ruas cujos corpos objetificados lutam pela sobrevivência, ainda que capturados pela cidade do lucro e consumo. Ainda vivemos em tempos de escravidão? “Pancada”!
A trilha sonora de Matheus Rodrigues e Leandro Belilo mantém o espetáculo em alta temperatura e voltagem. Já o cenário de Maurício Leonard e Leandro Belilo, além de instigante e funcional (para o desenho coreográfico), revela-se fundamental para a dramaturgia do espetáculo: a suspensão espacial da sala branca de jantar ratifica a imensa distância de vida daqueles que estão no andar de cima da pirâmide social, e os que lá embaixo são explorados e reduzidos a serviçais para a manutenção dos privilégios da classe dominante. Enquanto alguns comem e celebram, outros choram e são açoitados. Da escravidão oitocentista às recentes manifestações de civis em Brasília contra um governo golpista e ilegítimo, a cena se repete: enquanto alguns bebem vinho outros têm seu sangue derramado. Pancada! Pancada! E sem aspas.
Imagem que não se vai. Desde a entrada do público no Teatro Bradesco (assisti à apresentação na programação do VAC/2017) até o momento final do espetáculo, há uma imagem/ação permanente: um bailarino correndo. Corpo que não pode descansar, talvez fugindo de alguém ou correndo para alcançar algo. Importante condutor dramatúrgico do espetáculo a religar passado e presente, Machado de Assis (negro nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro) e o cotidiano de sujeitos negros na contemporaneidade. Na obra literária “Pai contra Mãe” de 1906, há o seguinte trecho:
”Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.”
Do estereótipo de fugitivo ao “corre” do negro que ainda hoje precisa se esforçar muito mais do que os outros para alcançar alguma coisa e provar seu potencial, opto por ler nessa corrida os passos firmes e resistentes de uma luta diária e sem fim: um caminhar para frente, no sentido de um futuro mais justo a ser alcançado e cuja força só se sabe aumentar. Porque não se trata mais de fugir, mas de ter atitude, lutar e dançar a “negritude, a principal tática/ herança da nossa mãe ÁFRICA/a única coisa que não puderam roubar! / Se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão para ser escura também! (Racionais MC’s).
Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Pai contra Mãe. In: Relíquias de Casa Velha. Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1906).
KEHL, Maria Rita. A fratria órfã: conversas sobre a juventude. São Paulo: Olho d’Água, 2008.
RACIONAIS MC’s. Júri Racional. Álbum RAIO X BRASIL. São Paulo: Zimbabwe Records (Gravadora), 1993.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia/ Lilia Moritz Schwarcz e Heloísa Murgel Starling. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.