— por Luciana Romagnolli —
Artigo a partir da programação do 25º Festival de Teatro de Curitiba, realizado entre 22 de março e 3 de abril de 2016, considerando espetáculos como “Batucada”, “Fole”, “Vaga Carne” e “Caranguejo Overdrive”.
Este escrito é obra do tempo. Seis meses o distanciam já do fim do Festival de Curitiba 2016, e o olhar que aqui provoca as palavras é fruto de uma relação de mais de uma década com este festival, que acompanho como espectadora desde 2003 – e como jornalista e crítica de teatro, desde 2006. Por quatro desses anos, de 2007 a 2010, como jornalista de teatro da Gazeta do Povo, maior diário da capital paranaense. Minha perspectiva, portanto, é a de quem vivenciou as mudanças que marcaram o festival ao longo de uma década. Dentre elas, a troca de direção, com a saída de Victor Aronis e o retorno de Leandro Knopfholz; o crescimento quantitativo tanto da mostra oficial (da casa das 20 para quase 40 peças) quanto do Fringe (das 200 para as 300 e poucos, com pico acima de 400 em 2015); e as iniciativas de artistas locais e de outros estados para criar ilhotas de curadoria na mostra paralela, na esperança de se destacar – e evitar a dispersão – entre as centenas de peças, como a Mostra Novos Repertórios, o Coletivo de Pequenos Conteúdos, a mostra Na Companhia de… (organizada pela Companhia Brasileira), mostras mineira, capixaba e baiana, dentre outras que mais ou menos lograram reunir programações de espetáculos pautadas pela investigação de linguagem.
Sem pretensão de um recorrido exaustivo ou de caráter propriamente historiográfico, proponho uma aproximação crítica livre a partir da edição 2016, marcada por uma mudança de curadoria que afetou significativamente a qualidade propositiva de experimentação de linguagem dos trabalhos apresentados na mostra oficial, como há muito não se via na cidade. Quando Marcio Abreu e Guilherme Weber assumem a função de curadores, a preocupação com um teatro de risco estético aumenta, sem que se abandone completamente a concepção de “vitrine” defendida pelo fundador e diretor do festival, o produtor Leandro Knopfholz, agora auxiliado por Giovana Soar. Ao lado de produções artísticas orientadas pela expectativa de agradar ao grande público cuja sensibilidade se constitui diante da televisão e do cinemão, a Mostra Oficial apresentou trabalhos que exploram a teatralidade e a performatividade em seus deslimites, proporcionando experiências estéticas intensas. Não que o teatro de grupo e de diretores que investem na pesquisa da linguagem teatral estivesse ausente em edições anteriores, especialmente nesta década, mas sua presença era mais tímida principalmente por estar ainda destituída de uma proposição curatorial definida (a lógica da “vitrine”).
Um dos aspectos mais marcantes da ação da dupla de curadores é a abertura para um teatro de fronteiras expandidas, de limites imprecisos, híbrido com a dança e a performance, que explora as potencialidades dessas linguagens e das relações entre corpo e palavra, corpo e som, palavra e som, ator e espectador, arte e política, arte e vida, em tensão para além das dualidades. “Batucada”, de Marcelo Evelin; “La Bête (O Bicho)”, de Wagner Schwart; “O Confete da Índia”, de André Masseno; “Fole”, de Michelle Moura; “Grão de Imagem”, de Grace Passô; “Caranguejo Overdrive”, da Aquela Cia., “Why the Horse?”, de Maria Alice Vergueiro; “Quem Tem Medo de Travesti?”, do Coletivo As Travestidas; e “Mamãe”, de Álamo Facó; por exemplo, são representativos dessa linha curatorial e colocam em cena questões das mais provocativas do teatro contemporâneo. Em paralelo, outra iniciativa inédita deste ano é a incorporação do debate crítico à experiência do espectador, com a realização de conversas com críticos convidados após boa parte das apresentações. Desses encontros, participamos Daniele Avila Small e Mariana Barcelos, pela Questão de Crítica, Daniel Toledo e eu, pelo Horizonte da Cena. Além disso, os assuntos postos em discussão nos encontros promovidos na sede da companhia Ave Lola respondem diretamente às questões artísticas abertas por essa programação.
Diferentemente de outras mostras e festivais pelo país, a exemplo da Mostra Internacional de Teatro – MITsp e do Mirada – Festival Iberoamericano de Teatro de Santos, compostas por um eixo crítico-reflexivo, com atividades voltadas à reflexão sobre os espetáculos e o fazer teatral e com a presença de críticos contratados para escrever sobre os espetáculos, esse viés crítico incorporado à programação é inédito no Festival de Curitiba, ao menos nessa última década. Sua ação limitava-se à presença de jornalistas de diversos veículos do país, uma dinâmica cada vez mais insuficiente ante o empobrecimento da crítica de teatro na mídia brasileira ao longo desses anos. A abertura para a crítica, então, depõe sobre uma relação mais íntima entre curadoria e crítica, essencial no desenho artístico de um festival que se queira mais do que um amontoado de “bons” espetáculos, mais do que um evento pautado pela lógica da produção e do consumo, à qual a arte resiste, mas, sim, ou também, como interstício social para a emergência de experiências artísticas como práticas simbólicas e políticas de subjetivação insurgentes, a ampliar e deslocar nossa percepção.
Já há algum tempo, a organização da grade de programação não permite o acompanhamento integral do festival, mesmo concentrando-se na mostra oficial. São mais de trinta espetáculos em duas semanas, geralmente apresentados no mesmo horário das 21h, exigindo escolhas. Recentemente, mostras especiais no Fringe somam-se à disputa da mesma faixa horária – foi o caso da mostra baiana e da mostra capixaba em edições anteriores e, agora, da Curitiba Mostra, que trouxe criações cênicas a partir de autores da literatura paranaense realizadas por algumas das principais companhias de teatro curitibanas (pela comunicação, não ficou claro se integrando a mostra oficial ou o Fringe). Em consequência disso, este texto se restringe a um recorte de espetáculos dentre as duas dezenas vistas por mim na edição 2016 – ínfima quantidade frente às três centenas de produções apresentadas nas mostras oficial e paralela. Teatro é arte da perda, já disseram tantos; o resgate que aqui se faz é gota d’água.
A abertura do festival já trouxe uma mudança perceptível em relação a anos anteriores, com a aposta na palavra poética em presença, performada por Maria Bethânia na fronteira da poesia com a música, no espetáculo “Bethânia e as Palavras”. A escolha já aponta para uma visão ampliada das práticas cênicas, suas interconexões com a literatura e com a música, e coloca para vibrar sobre o que vem depois a força da presença, a qualidade energética e dramática de uma intérprete que une como poucas a técnica à performance, com traços de ritual, e entoa um repertório de poesia popular brasileira colhida nos rincões do país, o que não deixa de ser um gesto político substantivo num contexto de amplificação dos preconceitos contra a arte, contra o Nordeste, contra classes, raças e gêneros. Sem proferir discurso direto (este, coube à parte da plateia), Bethânia abriu diante dos espectadores do festival um Brasil mais vasto, diverso, profundo, inesperado, menos condicionado aos dispositivos do marketing, da comunicação de massa e da indústria do entretenimento.
O indivíduo e o comum
Mas foi o primeiro espetáculo da mostra oficial que estabeleceu o alcance das experimentações abrigadas pela curadoria. “Batucada”, de Marcelo Evelin, coreógrafo e diretor piauiense que circula frequentemente por palcos europeus e apresentou na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp 2014 o espetáculo “De Repente Fica Tudo Preto de Gente” (Leia a crítica de Soraya Belusi). Importante recordar que o Festival de Curitiba, ocorrido entre março e abril, precedeu o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, num período em que os “panelaços” gritaram janelas afora a intolerância de parte da população contra a chefe de Estado e sua “ideologia de esquerda”, barateada em palavras de ordem totalitária contra “petistas” e “petralhas”. Nesse contexto de rebeldia de apartamento instado pelo conservadorismo, dedicado a abafar as vozes plurais e distintas da esquerda no país, o espetáculo que estreou em 2014, na Bélgica, ganhou novos e urgentes sentidos. “Batucada” é desses trabalhos que escapolem às definições. Situa-se na fronteira da performance, com foco na presença, na ação e no risco; da dança, pela ênfase no movimento dos corpos em relação à música produzida ao vivo em anti-instrumentos (panelas velhas e amassadas); e do teatro, tanto a performatividade está atrelada à teatralidade, num campo expandido como é comum no contemporâneo. Não se trata, aqui, de classificar, mas, ao contrário, lançar direções possíveis para aproximações à obra.
Num espaço aberto, amplo, com pé direito alto forrado por bexigas vermelhas em formato de coração que tocam o teto, os espectadores distribuem-se, tornando-se, eles próprios, cenário em torno do qual se movem os atores (usemos a palavra num sentido amplo) nus e com os rostos encobertos por máscaras pretas de pontudos narizes vermelhos, que só lhes permitem ver os olhos desafiadores. Feições tão acuadoras quanto suas movimentações corporais, que avançam para perto dos espectadores, encaram-nos, cutucam-nos, gerando uma atmosfera de estranhamento, mas sem efetiva violência (afinal, o espectador está ali para jogar junto, não para ser espantado do teatro). Parte dos atores é convocada na cidade da apresentação e passa por um processo seletivo e de preparação para compor um grupo heterogêneo, cujas formas corporais e vivências diversas se dão a ver pela nudez, enquanto as identidades imediatas são apagadas pelo mascaramento.
À ação de disputa de espaço com o público, soma-se a batucada propriamente dita, nas tais panelas amassadas, como uma ocupação agora sonora do espaço, transitando entre o silêncio e o barulho, a música e o ruído, os indivíduos e as formações grupais, a matéria concreta dos corpos e as imagens geradas pelas composições que formam, borrando as fronteiras e agenciando os opostos em uma forma complexa. “Batucada” faz-se paradoxal experiência de imersão para o espectador, que é destituído de seu lugar de conforto e de anonimato para passar a ser visto enquanto vê, a transitar entre observador e observado, uma ampliação de seu papel no acontecimento teatral que corresponde às inquietações de um teatro de situação cuja atenção se desloca para a relação com o público, conforme proposto pelo pesquisador espanhol Óscar Cornago (2016) ao pensar sobre as práticas cênicas expandidas deste início de século.
Esses espectadores são postos em situação de responder racional e corporalmente aos estímulos dos atores, num lugar incontornável de decisão sobre como se posicionar no espaço, como reagir à aproximação dos outros corpos, o que fazer com os próprios corpos e, no âmbito simbólico, quais sentidos atribuir a um espetáculo aberto que não concede julgamentos prontos. Embora conduzida através da estrutura armada por Evelin, a experiência do público é bastante livre e autônoma, há espaço para expressão de suas singularidades e estímulo à autorreflexividade sobre seu estar em cena: como olhar para as coisas? Como se posicionar? Como vivenciar? Em tensão a essa dimensão individual, “Batucada” chama a atenção também para a constituição do comum a partir de uma sociabilidade efêmera, configurando representações coletivas temporárias e diversas. Como os espectadores estão em posição de serem observados também, o comportamento de uns impacta os outros ainda mais do que no escuro das poltronas diante do palco italiano, e essa convivialidade determina variações no acontecimento cênico a cada apresentação.
A primazia do corpo é elemento em comum com “Fole”, da bailarina e performer Michelle Moura, que vive em Curitiba e foi uma das fundadoras da extinta Couve-Flor MiniComunidade Artística Mundial. Uma escolha curatorial duplamente fora dos padrões da mostra oficial do festival, na qual historicamente é escassa a seleção de artistas locais (mesmo como Michelle, com projeção internacional) e infrequente a dança contemporânea. “Fole” é um trabalho de genuína experimentação das possibilidades corpóreas inexploradas no estreito espectro da vida cotidiana, deflagrada pela ação mais básica do ser humano, a respiração, elevada às suas máximas potências pelo ofegar e pela hiperventilação. Essas ações dilatam o corpo, desestabilizam o equilíbrio e expandem a energia, que Michelle maneja lançando-se pelo espaço.
O jogo é de mútua afetação entre os cambiantes processos fisiológicos provocados pela performer e os estados emocionais resultantes (como a ansiedade), que por sua vez interferem de volta na sua fisicalidade, gerando outros ritmos, gestos, deslocamentos, até a emergência de uma “dança” (no sentido mais reconhecível, pois “Fole” como um todo pode ser visto como dança) e de sons que sugerem palavras e sentidos soltos. É uma criação artística que instaura um estranhamento insistente e pede ao espectador uma disposição curiosa: esse estado de experimentação contínua também, que se abre ao inexplorado da vivência humana pela ousadia de investigar outras vibrações para a percepção.
Vozes
Em contraponto, a palavra é valorizada ao extremo, em suas qualidades semânticas, sonoras e performativas, na “Mostra Ilíada Homero”, um ambicioso projeto do diretor Octavio Camargo sobre o qual se ouvia planos há mais de uma década. A primeira concretização foi o “Canto 1”, apresentado por Claudete Pereira Jorge desde 2006 (veja o vídeo). O conjunto só tomou sua forma completa no festival deste ano, na sala Londrina do Memorial de Curitiba, bem a tempo de a veterana atriz paranaense, que faleceu em julho, aos 62 anos, realizar com outros 23 atores os 24 cantos da “Ilíada”, cada um deles dando voz a todos os personagens em solos autônomos. Diante da fatalidade inesperada, a abertura do Festival para abrigar a mostra homérica, já um feito histórico em si, torna-se um acontecimento de valor inestimável para o teatro brasileiro.
A voz também domina a cena em “Vaga Carne: Grão de Imagem” (sobre o qual escrevi anteriormente para a revista pernambucana “Trema”, leia na p. 26). No solo, Grace Passô mostra uma faceta distinta da conhecida pelo público de seus trabalhos com o grupo Espanca. Ela é o corpo de uma mulher e a voz desconhecida que, em suas incursões pelo mundo das coisas e dos seres, encontra esse corpo e o invade, como um vírus, primeiramente estranhando aquela carne, depois, contaminando-se por ela. A teatralidade reside no corpo da atriz – feito cenário sobre o qual agem a luz e o som, envoltos pelo vazio do palco – e na própria voz dela, que se faz personagem e constrói por imagens verbais e sonoras a dramaturgia.
De modo completamente distinto de “Fole”, o solo de Grace é também uma exploração artística sobre e no corpo – não a partir dos fluxos de ar, mas da linguagem. O conflito surge, então, da dissociação entre voz e corpo. Afinal, “corpo e linguagem formam um par paradoxal de potência e limite: só é possível dizer o que cabe na linguagem, só é possível ser o próprio corpo, por mais adereços que se acoplem. Esticar, contorcer, desmembrar essas partes, por consequência, alarga o espectro dessa experiência”[1]. Outro aspecto distintivo é a problematização do efeito sobre o corpo causado pelo olhar do outro – no caso, o espectador –, e as tensões da identidade no campo subjetivo e no relacional.
Suas palavras, que antes desviavam dos referenciais identificados aos campos discursivos associados ao movimento negro e ao feminismo, tornam-se menos neutras, mais específicas, contaminadas pela carne e pela alteridade. Explode a questão do lugar de fala como questão, não resposta. (…) Uma maneira de olhar para Vaga Carne é essa. Como um percurso prévio, do neutro ao pessoal, do objetivo ao subjetivo, de uma voz alheia que atravessa o corpo a uma voz atravessada e apropriada pelo corpo. Do escuro de dentro para o escuro de fora[2].
Em “Caranguejo Overdrive”, da carioca Aquela Cia., o corpo encontra a palavra e a música para gerar uma tormenta de sentidos que varre a história do Brasil desde a Guerra do Paraguai até a atualidade, articulando tempos passado e presente, espaços (de Pernambuco ao Rio) e linguagens (ao teatro, soma-se a herança musical do mangue beat). Há o corpo-caranguejo convulsivo, cuja gestualidade carrega a memória da tortura no confronto em que o exército brasileiro dizimou o país vizinho. Há o corpo-caranguejo feito estátua, cuja imobilidade por 20 minutos concretiza a resistência, o esforço, mas também a desumanização e o endurecimento do ser, simbólica e cinética e cinestesicamente. E há os caranguejos vivos, índice desse outro real de que não devemos esquecer diante da ficção. Há a música insurgente e crítica, tocada ao vivo num sopro energético vitalizante sobre a cena. E há a história do homem catador de caranguejos que retorna da guerra faminto e transtornado e encontra um país em processo de destruição urbana, de cimentamento e embrutecimento de cidades e seus cidadãos.
Autônomas entre si, essas partes se atritam compondo uma dramaturgia polissêmica cuja compreensão demanda a ação reflexiva do espectador – intensificação de um processo mental sempre presente na arte, mas especialmente estimulado por trabalhos que enfrentam a complexidade das forças que agem na configuração de uma sociedade. As conexões vêm na fala da personagem paraguaia, em desempenho impressionante da atriz Carolina Virguez pela agilidade na narração ultrassintética – nem por isso simplificada – da história do país, desde Getúlio Vargas até os movimentos mais recentes da política. Um jorro de consciência e consequência, que se desdobra e dilata nas presenças corpóreas e sonoras que com ela dividem o espetáculo.
Essa tentativa de entender o presente a partir de um olhar em retrospecto é sugerida já ao fim da primeira fala do “caranguejo que um dia foi um homem chamado Cosme”:
…assim recomeça o ciclo, que nos ensina que não basta andar para a frente, como acreditam os homens, mas que andar para a frente é necessariamente andar para trás, recomeçar onde o fim não se precipita, e assim me movo, assim reconto meu passado, pois assim como os homens acreditei um dia que só poderia andar para a frente… (KOSOVSKI, 2016: 25)
É por esse viés que podemos distinguir “Caranguejo Overdrive” de grande parte do teatro crítico contemporâneo referenciado nos fatos políticos recentes da sociedade brasileira: mais do que posicionamentos contra a supressão de direitos democráticos e a reivindicação de respeito à cidadania e à diversidade, pautas indiscutivelmente legítimas que se alternam na cena teatral por variados caminhos estilísticos, o espetáculo da Aquela Cia. volta-se para o processo histórico de constituição social, econômica, cultural, urbanística, num esforço de compreensão não ingênuo nem reducionista – e que respeita o espectador ao não subestimar sua capacidade de chegar às próprias conclusões, sem bombardeá-lo com uma mensagem pronta, porque combate, mais do que qualquer outra coisa, o embrutecimento social.
Numa época em que os ecos dos panelaços ainda são ouvidos, “Caranguejo Overdrive” chama a nossa atenção para a importância de, mais do que gritar posicionamentos, debruçarmo-nos sobre o entendimento dos processos históricos que fazem uma sociedade como a nossa insistir no retrocesso de direitos de representação política, educação, arte e cidadania, e avançar vagarosamente na garantia da igualdade dos direitos, independentemente de sexo, gênero, classe, raça ou etnia. A fragilidade das instituições públicas que deveriam garanti-los está dada na memória do país. Só recuperando essa dimensão processual e histórica é que podemos enfrentar o estado de “desencantamento do mundo, anomia social”[3] que abate os frustrados pelo rumo político do país nesta década.
Para abordar a força do teatro como campo expandido apresentado no Festival de Curitiba deste ano, outros caminhos possíveis certamente passariam pelas experiências cênicas de elaboração ficcional da finitude humana em “Mamá” e “Why the Horse?” e da encenação de si mesmo em “Quem Tem Medo de Travesti?”; pelos espetáculos criados por companhias paranaenses para a Curitiba Mostra, como “O Bafo da Gralha” (CiaSenhas) e “A Cidade sem Mar” (Companhia Brasileira, sob direção de Nadja Naira e Giovana Soar), trabalhando a literatura na espacialidade de uma construção na rua São Francisco e imediações; e por outros tantos espetáculos, alguns dos quais nem cheguei a ver. Mais vozes são necessárias para dar conta de tanto.
Para concluir por ora, ainda que inacabadamente, resta registrar a afirmação de que Curitiba há tempos (não posso falar dos festivais que não vivi) não abrigava um acontecimento teatral tão significativo, efervescente em proposições discursivas e estéticas, provocador dos modos de percepção e intelecção: justamente o que a arte pode proporcionar de mais impactante para um indivíduo e um grupo social. A questão, a partir de agora, além da imprescindível continuidade desse aprofundamento do pensamento curatorial, é o trabalho para o envolvimento cada vez maior da cidade e de seus cidadãos. Não a formação de público embrutecedora que se baseia numa concepção hierárquica entre artista e espectador, subestimando este, mas, sim, a sensibilização de uma esfera pública para a experimentação e a descoberta.
REFERÊNCIAS
CORNAGO, Óscar. Y despues de la performance qué? Público y teatralidad a comienzos del siglo XXI. Urdimento, v. 1, n. 26, julho 2016, p. 20-41.
KOSOVSKI, Pedro. Caranguejo Overdrive. Rio de Janeiro: Cobogó, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
[1] ROMAGNOLLI, Luciana. A emergência de uma voz. Revista Trema, Recife, 2016.
[2] Idem.
[3] Expressões emprestadas de SAFATLE, Vladimir. A falência do ensino brasileiro não é de de seus professores. Folha de S.Paulo, São Paulo, 30-09-2016.