Crítica de “Black Off”, apresentada na MITsp 2017, e entrevista com a artista sul-africana Ntando Cele.
– por Joyce Athiê –
Entre os recortes trazidos pela MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo deste ano, a questão racial ganhou o debate, alimentado por seminários e espetáculos construídos em torno da representatividade, do racismo e de vivências singulares dos lugares de fala das pessoas negras. Dos três espetáculos apresentados dentro desse recorte, cada um carrega em si um contexto peculiar para refletir uma temática comum. “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”é o ponto de vista do homem branco se vendo diante de sua branquidade, “Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa” foi construído por um elenco negro brasileiro e “Black Off” traz a subjetividade de uma artista sul-africana.
Cada um deles exige um olhar para o lugar a partir de onde as obras foram construídas, mas, em particular, Ntando Cele, performer nascida em Durban e, hoje, residente na Suíça, exige outras lentes para se compreender um mundo de fora, atravessado por um oceano, e uma arte que não pretende se guiar por cânones de um teatro burguês que tão pouco compreende a própria presença dela e seu modo de fazer.“Arte complicada. É disso que nós brancos gostamos, não é mesmo?”, diz a personagem em cena, dando a entender serem seus propósitos outros.
Além das ironias destinadas aos “amigos brancos”, a indagação sobre o lugar que Ntando ocupava naquela noite também foi posta em debate. A margem se fez presente, ao menos naquele contexto, em um centro cultural no coração da Paulista, dentro da programação de um festival notório pelas reflexões e pela conteúdo dos experimentos e das pesquisas contemporâneas em teatro ali curados. Diante de uma plateia majoritariamente branca, era de se deduzir que tal ironia também problematizasse: “arte para quem?”.
A personagem que recebe o público, Bianca White, de peruca loira, olhos azuis e rosto pintado de branco, satiriza e debocha do modo de viver de uma classe privilegiada econômica e socialmente. Esta que, diante de um outro distinto de si, ignora-o, torna-o invisível, quando não age com diversas formas mais diretas de violência. Ainda que para a artista não haja equivalências entre a prática do “blackface” e a do “whiteface”, que ela realiza, é curioso pensar no que esta inversão provoca. Não se trata do reverso do racismo, mas de uma ação que evidencie a prática racista. Bianca busca o clichê, o estereótipo da representação do racismo, aquilo que está à vista diariamente, explicitando, em larga interação com a plateia, situações comuns e banalizadas no cotidiano brasileiro.
“É um prazer estar aqui no Rio, capital da Argentina”, diz, como se indagasse aos incomodados com a piada (adaptada à sua plateia) o que nós conhecemos da África, o que conhecemos de um mundo que não frequentamos, o que sabemos sobre as margens? Bianca pergunta, ainda contextualizando sua performance ao país onde se apresenta: “como chamam os negros no Brasil? Ou não os chamam? Há negros aqui?”. Trazendo à consciência as diferenças entre um continente e um país que mantêm entre si pontes históricas, as questões tomam de assalto uma lembrança ancestral, matriz de uma construção ignorada, silenciada e excluída. Feitas por uma africana, também sugerem “o que foi feito com os meus que para cá foram trazidos? Que lugar ocupam nesta casa?”
O humor de Ntando gera o riso solto de um show de stand up comedy. Era fácil identificar do que falava a performer, entretanto, ainda que provocado por ela, o que significa o riso diante da violência infligida ao outro? Autorreflexão, tensão, problematização ou banalização? Sobre o que absorve a plateia, pode-se apenas especular. Mas o humor, acidamente construído, aproxima a personagem do público – em especial, as adaptações do racismo ao contexto brasileiro.
A simplicidade no fazer coincide com a potência vibrante de uma vivência que aquele corpo constrói em discurso. Em um segundo momento, Ntando, fazendo uso de uma câmera, expõe sua demaquilagem, a retirada daquela pele branca evidencia a sua, negra. A imagens do rosto da atriz ressalta uma história carregada no corpo, nos seus traços étnicos e singulares. O formato dos olhos, as manchas da pele, os poros. Tudo isso, visto com a potência de aproximação dos recursos tecnológicos, é reforçado por uma desconfiguração provocada por cordas que apertam nariz, boca, olhos, bochechas, dando àquele rosto dimensões grotescas. O que penso daquele rosto? Como me relaciono com aquela imagem? O que ela provoca em meus padrões socialmente convencionados do belo? O que me causa? Desconforto e deslocamentos, no mínimo.
Embora enfatizada pelos recursos cênicos utilizados, a tal imagem é de um rosto comum, de uma mulher negra que, metaforicamente, transita entre nós em outros rostos. Pelo rosto de Ntando, projetado e ampliado nas dimensões no fundo do palco, a experiência cênica indaga “como me relaciono com esses traços?”. Aquela mesma atriz que havia provocado e conquistado a empatia pelo riso agora evidencia certa repulsa a partir da exploração imagética de suas feições desconfiguradas, presas por entre cordas. O riso, também reflexivo, parece se adensar em outras reações de observação e estranhamento. Aos poucos, ela se livra daquelas linhas que se prendem ao seu rosto. Pela resistência, um sopro de liberdade à vista prepara para a subversão ainda maior por vir.
Num terceiro momento do espetáculo, Ntando traz à cena a música, presente na sua pesquisa, em uma postura de enfrentamento, agora sem humor. À frente de uma banda formada por homens brancos, também alvo de seu sarcasmo, sua postura é punk, suas letras viscerais e diretas, evidenciando a urgência de seus anseios, o sangue de uma luta pulsante e o empoderamento de uma mulher que grita“Fuck yourself. Não precisamos de vocês”.
Entrevista
Em conversa realizada por e-mail, a atriz e performer sul-africana reflete sobre “Black Off”, espetáculo apresentado na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, e sobre sua vivência como mulher, negra, africana e artista na Europa e no mundo.
Joyce Athiê – Enfatizando falas representativas do racismo diário presente nas sociedades, com muita ironia, você provoca humor no público. É o branco racista rindo das opressões que comete. Na sua opinião, o que está por trás desse riso? Ele naturaliza ou faz refletir? Como você ouve esses risos?
Ntando Cele – Eu decidi abordar o racismo com muito amor e leveza. Ninguém ouve quando você grita ou fica fazendo pregações. Rir sobre si mesmo pode ser um passo na direção certa. É uma das muitas estratégias para implementar uma mudança. Eu ouço esses risos e espero que parte deles seja de vergonha. A apresentação é desconfortável e a risada é também uma reação a isso.
Pintar a pele de branco e colocar uma peruca loira cria alguma relação com o “blackface”?
Não. Não há equivalente ao blackface. Blackface era sempre para fazer rir de alguém por status inferior na sociedade. “Whitefacing” debocha sobre o privilegiado, é um espelho. Mas é inofensivo se comparado com a humilhação e a história do blackface.
No Brasil, temos visto crescer o número de grupos teatrais formados exclusivamente por artistas negros, como uma postura política que enfatiza a necessidade de espaços, visibilidade e representatividade. Em cena, você traz uma banda branca. Gostaria que comentasse essa opção.
Quando se mora na Suíça como eu moro, não se tem muitas opções. Eu trabalho com quem eu gosto e com quem está disponível. A Suíça não está pronta para um grupo formado apenas por pessoas negras.
Entre algumas ideias debatidas na MITsp deste ano está a noção de que o processo descolonizador será violento, no confronto direto, na disputa de poderes, na linguagem, na desconstrução de padrões, afirmando outras estéticas etc. No espetáculo, inicialmente, você ganha a plateia pelo riso, para em seguida mandar um verdadeiro “fuck yourself”, como uma porrada. Pensando nas artes, você também aposta nesse caminho de um processo duro, violento, que confronta a plateia para fazer refletir e transformar o racismo?
Uma mistura dos dois seria ótimo. Se você está falando do privilegiado, você precisa que ele faça a autorreflexão sem o sentimento de defesa. Pessoas com privilégios têm o luxo de não necessitar da mudança. Eles precisam querer a mudança, então eles precisam ver onde eles se perderam. A violência acontece hoje porque há injustiça e cresce o abismo entre pobres e ricos. Minha apresentação não é violenta e eu não a provoco. Mas o real diálogo tem que partir do confronto para que algo se transforme.
Você também traz bem humoradas críticas sobre a “arte complicada”, sem deixar de realizar um trabalho contemporâneo, com simplicidade e potência poética. O que é preciso transformar nesse espaço da arte para a construção de um caminho descolonizador?
Descolonizar a mim e ao meu pensamento só funcionaria se eu nunca fosse comparada a uma pessoa branca. Enquanto as pessoas pensarem “ela é muito contemporânea para uma pessoa negra”, o mundo da arte continuaria definido por pessoas brancas. Nós precisamos de uma nova normalidade, onde brancos e homens não sejam a norma.
Assim como na MITsp, você tem apresentado esse trabalho para plateias majoritariamente brancas. É para esse público que agora você quer falar? Como as pessoas reagem?
Eu não excluo ninguém, eu espero. Nós todos precisamos mudar, não apenas o público branco. Eu adoraria pensar que eu implemento a mudança de forma que as pessoas de todas as cores vejam elas mesmas e os outros.
Em “Black Off”, a postura de confronto, de luta contra a opressão, é notável. Como você reflete sobre a noção de empoderamento?
Empoderamento poderia ser uma reimaginação da negritude, de mim mesmo. Não é apenas dizer o que eu penso ou chamar a atenção para a injustiça, mas também usar o teatro para quebrar e endereçar tabus que em minha própria vida são difíceis de enfrentar. Empoderamento é o pensamento, a tentativa de me libertar e, esperançosamente, libertar os outros do comportamento condicionado.
Eu fiquei curiosa por saber se você já apresentou esse trabalho para um público majoritariamente negro. Se sim, o que muda na recepção do trabalho?
Este trabalho não, mas apresentei Bianca White, meu alter ego branco, para um público negro. Estranhamente, ela é bastante querida pelas pessoas negras porque a maioria conhece alguém como ela. O trabalho, como é agora, é novo. O Brasil foi o segundo lugar depois da Suíça a recebê-lo.
A performance da Bianca White se adapta aos países por onde ela é performada. O que você encontrou de peculiar no comportamento da sociedade brasileira em relação às pessoas negras?
O branco no Brasil é uma construção da mente. É mais um conceito do que, por exemplo, o que existe na Europa. Ninguém é de fato daqui, do Brasil. Tem uma ancestralidade racial. A outra grande diferença em relação à Europa é que aqui as pessoas negras não são estrangeiras. Elas estão aqui da mesma forma que as pessoas brancas. Falar em “raça” ou dividir pessoas em diferentes raças é racismo em outros lugares, especialmente em países de língua alemã. Mas não falar sobre isso, também não é a solução. Então, todos nós temos que encontrar uma maneira de falar sobre tabus.
Além do “Black Off”, gostaria que falasse dos seus projetos artísticos.
Eu estou trabalhando em uma colaboração com uma atriz branca suíça. O trabalho se chama “Ébano e Ironia”, sobre estereótipos e diferenças em uma amizade. E vou trabalhar na África do Sul, em uma peça em Zulu, que aborda as questões de relações familiares e violência.
Você acredita que a arte pode ser um espaço para se criar novas formas de convivência entre brancos e negros?
Arte é uma palavra grande, há tantas abordagens diferentes na arte. A arte que carrega a ideia de fazer as pessoas rirem juntas sobre si mesmas talvez crie um espaço para facilitar a discussão. Mas ela só existe como um espaço seguro e temporário. Uma vez que o trabalho acaba, as pessoas ficam sozinhas novamente. A arte não é poderosa, não está do lado do poder. Isso a torna forte nas mãos dos impotentes. O que quero dizer é que a arte pode ser um instrumento de empoderamento.
A arte também reflete o racismo e o machismo das sociedades, tanto nas obras artísticas quanto nas relações estabelecidas entre os profissionais da arte. Como uma mulher, negra e africana, como têm sido suas experiências, desafios, conquistas e também os seus confrontos no contexto europeu?
(Você me ouve suspirar?) Na Europa, eu sou, em primeiro lugar, africana, depois negra e depois uma mulher. Há muito o que desafiar. Eu tenho que escolher sabiamente minhas batalhas e saber quais são as minhas necessidades. Primeiramente, eu tenho que fazer as pessoas sentirem que eu sou apenas um outro companheiro humano. Enquanto eu não for vista como um ser humano, a luta sobre todos esses rótulos é inútil. Eu estou esperando para, eventualmente, ser capaz de me definir como feminista. Mas, para isso, a discussão precisa evoluir. Na Europa, de qualquer maneira.