Por Soraya Belusi
Mas, no meio do caminho, o coletivo (formado pelo diretor e dramaturgo Diogo Liberano e pelos atores Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Virginia Maria, Márcio Machado, Laura Nielsen e Gunnar Borges, além dos professores/supervisores) viu-se atravessado pela tragédia ocorrida em uma escola municipal do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, tendo que modificar, assim, seu percurso dramatúrgico inicial. Esse entrecruzamento de camadas entre real e ficcional, de narrativas próximas e distantes, do individual e do coletivo, do comportamento adulto e do infantil, do absurdo e do cotidiano, impregnou toda a linguagem que alicerça o espetáculo – entre o que está longe e perto, entre o quase naturalismo e o total estranhamento, entre a crueza o objetiva das palavras e a existência da poesia.
O retrato antigo de uma família arquetípica é o ponto de partida de “Sinfonia Sonho”, cujo centro do quadro apresenta ao público quatro personagens vendados. Essa composição cênica harmoniosa é invadida e revelada pela entrada de um narrador, que irá nos apresentar, de maneira distanciada e objetiva, quem são aqueles personagens e o que os une ali. É justamente essa presença afastada, de fora de ação, que reforça a ideia tão presente na dramaturgia de quão complexa e impalpável é a tentativa de se explicar a violência e a dor, causa e consequência diretas do impacto de um tragédia coletiva. O que o grupo propõe é “uma possibilidade de expressar o impossível”, diz Diogo Liberano no programa da montagem.
A montagem não busca explicar a tragédia, apenas a apresenta, problematiza-a, numa espécie de composição quadro a quadro, em que cada personagem delineia sua melodia no espaço vazio delineado no chão. A economia nos recursos de cenário e figurino permitem uma neutralidade em que se ressalta o desenho corporal e rítmico do jogo dos atores e dos personagens – como na cena de ‘apresentação dos personagens’ em que, numa espécie de dança de mãos, eles se contém uns aos outros para que não possam sair de seus lugares ou realmente se revelarem. A sinfonia do título se reproduz na partitura corporal que cada personagem apresenta, aliado ao sonho marcado não só pelos momentos em que Kevin tenta se tornar música quanto pela permanente presença dos atores à margem da ação central.
A crueldade expressa no jogo infantil – referência que me lembrou muitas vezes recursos utilizados na dramaturgia do absurdo por mestres como Arrabal e Beckett – serve de base à relação entre os irmãos Célia e Kevin, numa alternância quase cúmplice, concedida, de proteção e submissão. Mesmo cega de um olho, Célia enxerga o delírio que seus vizinhos estão submetidos e é capaz de compreender o irmão ao vê-lo indignado quando sua mãe diz que o fato de ele querer se tornar música é metáfora. Os adultos é que se encontram em mundos imaginários, que insistem em não querer aceitar a realidade enquanto seus mundos interiores parecem desabar (Eva que insiste em fingir que está tudo bem enquanto corre cegamente em busca do seu sucesso profissional, e Moira, incapaz de aceitar a morte de seu filho Tomas, vivendo uma gravidez delirante).
As banais discussões de Célia e Kevin escondem reflexões sobre temas como a incapacidade de nos enxergamos mesmo que debaixo de um mesmo teto, o fracasso das relações inter e extra-familiares, a necessidade revolucionária de libertar o desejo, ou, para Kevin, o direito de sonhar só com o que se quer e de virar música.
Tomas também cumpre essa função de representar a incapacidade de seus pais de lidar com o horror da vida real, optando pelo delírio. O personagem vaga pela cena durante todo o espetáculo, sempre presente na moldura, mas ausente na ação. Relação que rompe, num choque entre o onírico e o real, ao se dirigir ao público e narrar o dia em que resolveu tentar voar com balões cheios de ar amarrados aos pulsos e acabou virando comida de urubu.
Neste quadro, as crianças já perderam a inocência, a possibilidade de “não sonhar apenas dormindo”, foram atravessadas pela realidade da pior maneira. São elas que pontuam o quão absurdo pode ser o cotidiano.
(*) “Sinfonia Sonho” foi apresentado dentro da programação do Festival Estudantil de Teatro, no Galpão Cine Horto.