— por Daniel Toledo —
I
Há quem afirme já ter passado o tempo das cadeiras nas calçadas, das conversas entre vizinhos em plena rua. Há quem afirme ter passado inclusive o tempo em que esses mesmos vizinhos, já um tanto tecno-urbanizados, compartilhavam as próprias vidas ao se encontrarem no elevador ou em outras dependências do prédio. Desterritorialização já é palavra conhecida, estamos todos em rede e raros são os momentos em que de fato estamos onde realmente estamos. Noções de perto e longe se embaçam, e nossos vizinhos mais próximos muitas vezes estão a quilômetros de distância, em outras cidades, em outros países.
Suponhamos, no entanto, a partir de uma perspectiva mais contemporânea, que tais práticas de vizinhança, essas que embaçam as noções de perto e longe, e as outras, mais convencionais, possam sobrepor-se umas às outras. Suponhamos que os tempos que vivemos sejam, então, caracterizados pela ampliação das práticas de vizinhança – e não pela substituição de antigas práticas por novas. Estabelecemos, então, múltiplas relações de vizinhança, não mais limitadas por proximidades geográficas, mas inevitavelmente condicionadas por essas proximidades, pelo contexto material que nos envolve.
Foi com a declarada intenção de reconectar-se a essa vizinhança de origem, a cidade de Belo Horizonte, que há cerca de cinco anos o grupo Espanca! alugou e reformou uma pequena loja no centro da capital. Tratada pelos integrantes do grupo como um projeto autônomo em relação aos espetáculos que integram seu repertório, o Teatro Espanca! tem se constituído como um movimentado laboratório de criação, curadoria, fomento, produção e gestão cultural.
Tendo a rua Aarão Reis e o viaduto Santa Tereza como vizinhos impossíveis de se ignorar, o espaço rapidamente se tornou parceiro de iniciativas que aconteciam por ali, tais quais o Duelo de MCs, o Sarau Vira Lata e o próprio Carnaval de rua de Belo Horizonte. Outras iniciativas, por sua vez, encontraram nas portas sempre abertas do Teatro Espanca! a possibilidade de sair do campo das ideias e alcançar o mundo real – para citar apenas algumas, Janela de Dramaturgia, Cinema de Fachada e Mostra Cantautores, entre vários artistas e coletivos que, ao longo dos últimos anos, emprestaram suas fisionomias ao teatro e seus arredores.
Também nasceu do contato com a rua o ensaio fotográfico “Passarão” e a performance “Ruído”, ambas concebidas pelo ator e diretor Marcelo Castro, integrante do grupo. Realizado em 2011, o primeiro levou às redondezas do Teatro Espanca! retratos de alguns dos seus vizinhos, incluindo num mesmo balaio – quiçá este mesmo da vizinhança – parceiros, espectadores, trabalhadores da região e moradores de rua . O segundo, por sua vez, aconteceu pela primeira vez em agosto de 2013, a partir de um procedimento extremamente simples, no qual o público da ação é convidado a sentar-se nas arquibancadas do teatro e assistir ao intenso movimento da rua Aarão Reis – tal qual, certamente, muitas vezes fizeram integrantes e colaboradores do grupo. Convertido em uma espécie de varanda térrea com vista pra cidade em pleno acontecimento, o teatro oferece, então, ao público a experiência de reconhecer-se parte de uma complexa vizinhança da qual, dizem os tempos, não devemos nos esquecer.
II
Mesmo antes de realizar o sonho da casa própria, entretanto, o Espanca! já era dado a práticas de boa vizinhança. Foi em dependências alheias, por exemplo, que aconteceu em 2007 a primeira edição do Acto! Encontro de Teatro, quando o grupo convidou a Companhia Brasileira (PR) e o Grupo XIX (SP) para uma temporada de conversas, mostras de processos e apresentações em Belo Horizonte. E os vizinhos de alhures e arredores, como não podia nem devia deixar de ser, foram prontamente convidados.
Já em “Por Elise” (2005), é bom lembrar, somos devolvidos aos tempos das conversas na calçada, e da janela observamos à movimentação de uma pacata rua povoada por uma dona-de-casa, um lixeiro, um funcionário, uma mulher e um cachorro. E o que pode, por fim, acontecer entre nós e esses vizinhos instantâneos? Estamos perto ou longe deles? Nos envolvemos com tudo, tanto quanto eles? Tomamos cuidado com o que plantamos em nossos quintais, em nossas vilas, em nossas aldeias?
“Amores Surdos” (2006), por sua vez, nos leva a um apartamento onde, sob densa atmosfera de coisas não ditas, integrantes de uma mesma família convivem como estranhos vizinhos que vez ou outra dividem o mesmo elevador. E como se as faíscas desse desconhecimento não rebatessem em qualquer família, há também vizinhos que encobrem com música erudita as próprias discussões.
Em “Congresso Internacional do Medo” (2008), vizinhos que habitam um mesmo planeta são convocados para uma extraordinária reunião de condomínio para a qual estamos, também, todos convidados. Em “Marcha para Zenturo” (2010), ex-vizinhos de juventude se reencontram após anos de distância, enquanto observam pela janela uma curiosa marcha que toma as ruas da cidade.
É nesse momento, curiosamente, que o Espanca! inaugura sua sede. Como se saíssem da janela de “Marcha para Zenturo” em direção à passeata que invade a cidade, os integrantes do grupo reivindicam a possibilidade de atuar também fora dos palcos, ampliando em muito o alcance de suas ações. Além de criar, produzir e apresentar espetáculos, o Espanca! converte-se, então, num importante ator e articulador político da cena cultural de Belo Horizonte.
Com três edições realizadas desde a abertura do espaço, o projeto de ocupação cultural Arte no Centro – antes intitulado Teatro Espanca! aberto para – é um dos principais caminhos desenvolvidos pelo grupo para articular diferentes pontas da cena cultural e agregar, em suas dependências, vizinhos oriundos de variadas cercanias. E entre as escolhas curatoriais do grupo, percebe-se um interesse muito claro por trabalhos que estabeleçam diálogos simbólicos e concretos com o entorno do teatro, seja a partir da realização de atividades que envolvam transeuntes, moradores e trabalhadores da região ou ainda que incluam discussões caras ao amadurecimento político da sociedade brasileira, contribuindo para a formação de uma consciência coletiva menos preconceituosa e discriminatória no que se refere a questões de gênero, raça e classe. Somos todos vizinhos, afinal, e pode ser que um pouco de escuta ao outro nos ajude a mudar de rota a sociedade desigual e muitas vezes cruel que, a cada dia, construímos e reconstruímos juntos.
III
Numa rápida pesquisa ao Google, descubro então que a palavra vizinho vem do latim vicinus: “próximo, o que mora perto”. Vicinus, por sua vez, deriva de vicus: “vila, aldeia”. Se as imagens mais tradicionais que temos sobre vilas e aldeias tornam-se cada vez mais raras ante o contexto social contemporâneo, alguns caminhos em direção oposta parecem se anunciar. Um deles, ao que parece, seria recriar, ainda que à própria maneira, tais vilas e aldeias. Colocar, quem sabe, nossas cadeiras na calçada, conhecer, de fato, as nossas vizinhanças, dialogar com elas e com seus conflitos – porque dessas vizinhanças e desses conflitos também nós fazemos parte.
Faz sentido, então, que “Dente de Leão” (2014), espetáculo mais recente do grupo, nos devolva a um ambiente tão familiar quanto um auditório escolar. Se é em contextos como aquele que geralmente recebemos nossas primeiras lições sobre o fazer teatral, retornar a esse contexto, já na vida adulta, talvez nos conduza a uma perspectiva mais crítica sobre as escolas que um dia, sem saber que o fazíamos, ajudamos a construir para os vizinhos que nelas vieram viver depois de nós.
Somos todos vizinhos, afinal. Nós, os professores de “Dente de Leão” e a mulher que foi linchada no interior de São Paulo após um boato espalhado no Facebook. Somos todos vizinhos, nós, os garis do Rio de Janeiro e os administradores da prefeitura que lhes pagavam R$ 803 mensais. Somos todos vizinhos, nós, os índios Guarani-Kaiowá e os latifundiários do Centro-Oeste brasileiro. Todos vizinhos, os policiais e os traficantes, os motoristas e os ciclistas. Somos todos vizinhos, sim, e precisamos aprender a conviver melhor.
Somos vizinhos, sobretudo, de um mesmo tempo, no qual os recorrentes maus usos e abusos de poder são colocados em cheque nos quatro cantos do mundo. Atravessamos todos, juntos, a uma revolução que já há algum tempo tornou as ruas – e também os palcos, por que não? – em uma permanente arena de convivência, discussão e ação sobre questões urgentes que, seja ali na esquina, na Ucrânia ou na Palestina, já não faz sentido ignorar.