por Luciana Romagnolli ::
“Frag#3” expõe prazer e degrado pelo consumo
“Frag#3 Aproximación a la Ideal de Desconfianza” coloca o público em condição de alerta, ao privá-lo do acomodamento na poltrona e demandar um trânsito pelo espaço para decidir o que ver, enquanto três polos de ação ocorrem simultaneamente, a partir de cada ator-performer. O consumismo liga-se a certo automatismo da rotina contemporânea, como alvos das críticas proferidas pelo texto de Rodrigo García e pela encenação da companhia PitouStrash. Lá estão as fast-food, mas também controles de videogame e máquinas fotográficas num disparar incessante (espelhado pelas câmeras de alguns espectadores), a indagar como consumimos o tempo, qual tipo de experiência de vida nos proporcionamos.
A opção do grupo por abdicar das legendas e deixar fruir os textos em francês, espanhol e portunhol desloca o foco de atenção das palavras e seus sentidos para o ato performático de dizê-las e para a os corpos presentes. Isso é positivo na medida em que é baixa a qualidade de escuta das palavras naquela espacialidade aberta e repleta de estímulos, e a legenda romperia a espontaneidade da fala. Além disso, o que se ouve é um discurso crítico contra o consumismo e o capitalismo que não alcança a elaboração poética e irônica mostrada por García em “Gólgota Picnic”.
Como cena, “Aproximación” também não repete o impacto sensorial do espetáculo anterior de García, dirigido por ele mesmo. Contudo, sua força visual e performática reside na tomada da ação pelos atores e no modo como eles inscrevem o consumo nos próprios corpos, gerando imagens de sensualidade e asco, que levam ao paroxismo a relação de prazer e degrado entre o corpo e o consumo. A imagem derradeira de um carrinho de supermercado em chamas ganha caráter de libertação ao abrirem-se as portas da sala teatral para o mundo externo, e a música sacra sobrepõe associações entre uma devoção ao consumo e seu sacrifício final, em crítica ao lugar venerável que o consumismo ocupa em nossos tempos.
Drama familiar desestruturado
“Emilia” envolve o espectador na intimidade de uma família para contar uma história de fracassos. A personagem-título é o elemento invasor, a partir do qual se lança um olhar externo sobre a conjunção disfuncional entre pai, mãe e filho, construída a princípio pelo estranhamento incrustado na rotina do trio, até que aos poucos revelem-se desacertos que conduzam a um final trágico. O ato extremo cometido pelo pai e a atitude de Emília frente a ele – só sugerida – compõem uma dramaturgia que parece querer provar uma tese, expondo o contraste entre a indiferença no núcleo familiar e a aptidão ao sacrifício da ex-babá que retorna. Entre o desamor e o amor incondicional.
A história se adensa pelas atuações verossímeis que variam com sutileza entre o familiar e o estranhado, de modo que cada personagem guarde um drama complexo para si, do qual somente parte escape à vista. A ambientação em um reduzido quadrado cercado de pilhas de roupas e caixas elimina o excesso de realismo para concentrar na essencialidade emocional do melodrama. O teatro de Claudio Tolcachir é o desse drama desestruturado. Um contador de histórias que requer a imersão na ficção e a reação catártica, ainda que deixe lacunas à reflexão .
Berliner Ensemble faz Hamlet chafurdado em sangue
Fundado por Bertolt Brecht (1898-1956) e já dirigido por Heiner Müller (1929-1995), o Berliner Ensemble apresentou no sábado o espetáculo mais vigoroso desta edição do FIT-BH. “Hamlet” é uma apropriação original da tragédia de Shakespeare, a qual o diretor alemão Leander Haussmann aproxima de subgêneros do terror como o “gore”, pela exposição violenta de vísceras, e o “splatter”, pelos espirros de sangue. O exagero de cérebros e tripas arrancados precipita-se em humor.
O grupo estrutura as quase quatro horas de espetáculo irregularmente e o constrói com elementos brechtianos. As cenas são pontuadas por canções folk (e um Nick Cave como música-tema) executadas didática e ilustrativamente por “anjos” em branco e preto. O prólogo e o epílogo acrescentam camadas de distanciamento crítico das emoções da tragédia, com um olhar irônico (por vezes, escrachadamente cômico) sobre os acontecimentos.
O Hamlet criado pelo ator Christopher Nell é artífice de uma barbárie e chafurda em sangue. Desde o princípio, sua loucura é acentuada até que transborde na irracionalidade de quem destroça Polônio. Esta escolha dramatúrgica dispensa instantes de aguda lucidez vistos em interpretações que colocam em dúvida o quanto sua sanidade foi afetada e o quanto ele apenas o simula. Em troca, reforça a leitura de que a perspectiva que se tem da história é o delírio do protagonista.
A favor desse entendimento, pesa o apagamento dos demais personagens, que não apresentam a complexidade de seus próprios dramas. A maior perda, nesse sentido, é a solução para a morte de Ofélia, cujas imagens poéticas do texto não se convertem em cena. A propósito, as falhas na legendagem prejudicaram especialmente a personagem. Em contraponto, a cena da descoberta do suicídio por Hamlet é plasticamente bela e emocionalmente intensa, como o são os melhores momentos da encenação.
Focada no espetacular, a dimensão política do texto se esvazia na encenação feita pelo grupo herdeiro do teatro crítico brechtiano, transposta para o olhar distanciado proporcionado pelo prólogo e pelo epílogo sobretudo, e pela recusa à catarse que o exagero debochado da violência manifesta.