– por Marcos Alexandre –
Crítica a partir da pela “Banho de Sol”, da Zula Cia de Teatro.
“Quando que uma luta passa a ser uma causa sua? Nós somos quatro mulheres brancas para falar de uma realidade, de um encontro que se deu onde 69% das mulheres encarceradas não negras e isso nem foi discutido por nós enquanto a gente estava lá dentro…”[1]

“Banho de Sol”, da Zula Cia de Teatro. Foto de André Veloso.
Como lidar com os AFETOS que nos atravessam? O que fazer quando sentimos silenciados pelos afetos e a (nossa) empatia nos deixa em estado de contemplação e repletos de emoção?
Sentimentos múltiplos invadiram, mais uma vez, o meu corpo ao rever “Banho de Sol”, da Zula Cia de Teatro e, novamente, saio do teatro meio absorto e sem saber muito bem como lidar com tantos sentimentos que percorreram meu corpo e meu inconsciente num espaço de 2 horas e 15 minutos. Fica a sensação de revolta e de impotência de ter a consciência de que seguimos vivendo em uma sociedade injusta e me pergunto como “digerir” e lidar com aquele turbilhão de imagens-estupefacções às quais fui exposto.
Acredito que a sensação de sentir-se embriagado por tantas emoções toca grande parte da plateia que se faz presente no CCBB na noite de 2 de junho de 2019. Basta dirigir o olhar para os lados, uma vez que em vários momentos a luz de plateia é direcionada ao público fazendo do mesmo copartícipe da proposta espetacular – e ver os rostos dos espectadores também em estado pleno de contemplação, olhos e olhares lacrimejados, respirações ofegantes e narizes fungando – mulheres e homens – sim, muitos homens – se mostram, muitos, sem dissimular a emoção.
“Banho de sol” surpreende e é potencializado como grande trabalho por muitos motivos, desde a qualidade da equipe envolvida na produção e realização do espetáculo; a instalação/exposição, concebida por Alexandre Tavera, que é “realizada” antes de as atrizes e os espectadores adentrarem o teatro – há que se ressaltar o espaço convival que é experienciado pelas atrizes e público presente na antessala do teatro –; às excelentes performances das atrizes Gláucia Vandeverld, Kelly Crifer, Mariana Maioline e Talita Braga, que conseguem envolver a plateia em cada cena criada pelo roteiro proposto. De modo que nos levam a vivenciar vinte e seis cenas/ações do banho de sol diário.
Outro aspecto que deve ser evidenciado é função sociopolítica do espetáculo que conclama as mulheres para dividirem as histórias que serão vivenciadas no palco. Assim, a dramaturgia proposta fala com e para as mulheres, e não que os homens não sejam bem vindos naquele espaço; não obstante, todos devem estar cientes de seus (nossos) lugares de privilégios dentro do contexto patriarcal em que ainda vivemos. É muito evidente que, ideologicamente, a proposta e as cenas são direcionadas às mulheres, pois as atrizes deixam bem claro quando se dirigem ao público feminino presente dizendo: “Sejam todas muito bem vindas, bem vindas, bem vindas!”.
Ainda discutindo sobre os lugares de privilégios, torna-se imprescindível também delinear que as atrizes têm consciência de suas prerrogativas e condições de preeminência enquanto mulheres brancas, socialmente, bem sucedidas. Só o fato de estarem num presídio feminino na função de professoras já as deixam em posição de uma “suposta hierarquia”. Neste sentido, colocar por terra as divisões binárias sociais traz à encenação um desafio a mais. Daí, o poder das cenas que buscam tratar das distintas formas de invisibilidades vivenciadas por aquelas mulheres dentro do sistema carcerário.
E é por tudo isso que cada cena/movimento se agranda diante dos olhares da plateia quando as “histórias” de diferentes mulheres são compartilhadas: aquela que mulher que era tão rica que talvez chegasse a comandar o estado inteiro ou o país inteiro, aquela que matou o seu bebê por ouvir vozes, aquela que se encontrou com uma das atrizes com quem tinha trabalhado num passado recente; mulheres pobres em sua maioria, abandonadas pelos maridos, parceiros, amantes, que não são perdoadas pelas famílias, parentes, pela sociedade…
Construir juntas…
Esta é a proposta de “Banho de sol”. Quatro atrizes – três delas mães, uma ainda estava amamentando quando deu aulas para as detentas, outra estava grávida e ganhou o seu filho uma semana depois de concluído o projeto na penitenciária – constroem juntas e com a colaboração de algumas mulheres da plateia o banho de sol de cada apresentação. É um jogo que se estabelece e que traz para cena, colocando em conflito, identidades, subjetividades e corporeidades femininas que clamam por terem suas histórias compartilhadas…
“Banho de sol” é um encontro que urge ser compartilhado e ressignificado inúmeras vezes…
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[1] Fragmento de texto da atriz/personagem Talita Braga.
Ficha técnica:
Ficha Técnica:
Realização: Zula Cia. de Teatro;
Direção: Mariana Maioline e Talita Braga;
Dramaturgia: Talita Braga;
Criação e atuação: Gláucia Vandeveld, Kelly Crifer, Mariana Maioline e Talita Braga;
Consultoria dramatúrgica: Vinícius Souza;
Preparação vocal: Ana Hadad;
Iluminação: Cristiano Araújo;
Trilha sonora e vídeos: André Veloso;
Direção de arte (cenário e figurino): Alexandre Tavera;
Designer: Philippe Albuquerque;
Produção executiva: Andréia Quaresma;
Diário de criação: Clara Garavelho.