Texto escrito para o Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral ministrado por Luciana Romagnolli no projeto Diálogos Cênicos, a partir da aula-espetáculo de As Rosas no Jardim de Zula.
– Guilherme Diniz –
Uma mulher que, por razões insondáveis, abandona a casa, filhos e marido em busca de um real significado para sua existência; se lança abertamente ao mundo, colhendo dele os mais amargos e diversos botões para no fim plantar um vasto jardim de memórias, em que cada rosa abriga em suas pétalas partículas de experiências íntimas, sonhos e frustrações realizadas, e um passado controverso, enraizado no âmago de seu ser. Estamos em um jardim espinhoso talvez, mas não menos florido do que tantos outros.
As Rosas no Jardim de Zula é algo trágico, flerta com o drama, mas se acomoda na cadeira do documentário. O primeiro espetáculo da Zula Cia. de Teatro reconta parte da vida de Rosângela, mãe de Talita Braga (atriz integrante do grupo). Do momento em que se retira do lar às vivências vindouras que sua escolha acarreta. Em realidade, assistimos não à peça completa, mas a uma aula-espetáculo cujo objetivo era nos fazer conhecer as referencias artísticas e teóricas utilizadas, seu processo de pesquisa e criação, as transformações que a obra sofreu e como se efetuou sua forma última.
Uma das questões levantadas residia no caráter funcional do documentário. Mesmo que se associe a ele a habitual função de mobilização social e política, este fator se dá menos pela sua correspondência identificável com a realidade do que pela forma como ele rearranja símbolos e elementos reais e os reconfigura plasticamente, assegurando entre eles relações móveis, novas e geradoras de outros sentidos. Para a encenação em questão, seu aspecto documental possibilitava a reinvenção de memórias e sua adaptação cênica. Ademais, sua constituição fundada em acontecimentos reais fomenta reflexões indagativas a respeito do que é ser mãe e de como a mulher contemporânea se articula neste universo.
Sua fonte de pesquisa primária é a memória de Rosângela; os limites e potencialidades das reminiscências balizam tal construção teatral. A presença da não-atriz em cena, na projeção, acentua as vicissitudes e crises da representação cênica contemporânea. Sua imagem paralela à imagem da atriz que a interpreta intrinca seu papel e importância, além de questionar se tudo é passível de representação artística, se todos os extratos da realidade são cabíveis em personas/artifícios ficcionais.
O documentário Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho orientou o coletivo neste sentido. O filme coloca atrizes para interpretar, à sua maneira, relatos de anônimas, propondo um choque vívido sobre o que é real e até onde a representação abarca fidedignamente um fato. A poética fílmica de Coutinho foi, para Andrea Quaresma e Talita Braga, um manancial de apontamentos sobre o que significa ser fiel (ou não) à realidade e sobre o apoderamento de narrativas alheias compreender detalhes que mesmo uma boa atuação pode não mostrar. O ator traz algo de pessoal para a personagem e molda, através de sua presença cênica, a imagem do outro, conferindo-lhe características suas.
Outro ponto-chave debatido na aula-espetáculo é o lugar da atriz Talita Braga na qualidade de filha da documentada. Qual o momento apropriado para revelar tal informação? Antes ou depois do espetáculo?
Independentemente do momento selecionado, o conhecimento público dessa informação coloca em segundo plano a atriz, destacando seu estatuto de “documento”. Este efeito carrega em si alavancas que podem reforçar o documentário e seu discurso, entretanto sua parcela de pessoalidade se avoluma consistentemente; se ganha legitimidade, esta vem cingida de subjetividade afetiva, tal resultado não depaupera a escritura cênico-dramatúrgica, pois ao diminuir a distância com o objeto estudado, produz atritos que jogam melhor no âmbito da empatia do que no reino improvável da imparcialidade absoluta.
O receio de, como filha, expor uma narrativa dessa natureza tão pungente contribuiu para Talita Braga repensar se era válido explicitar sua relação filial com Rosângela. Não era a intenção da atriz tratar a mãe como mero personagem, não obstante, é da natureza da arte ficcionalizar os seres que passam por seus domínios, uma má construção teatral poderia não somente tornar ficcional a história retratada, mas artificializar as circunstâncias, atenuando o fulgor que elas possuem.
O encontro com a diretora Cida Falabella norteou decisivamente o trabalho documental, conforme visto, suas direções estruturaram esteticamente o teor épico de As Rosas no Jardim de Zula. Durante a aula, quando Cida diz que era necessário não deixar algo se instalar demais, instantaneamente somos levados às teorizações de Brecht em relação a fragmentar a ação para não instaurar a ilusão teatral hipnótica no público, propiciando dessa forma o questionamento sobre o que é visto. Os momentos dramáticos, narrativos e documentais se mesclaram para vivificar as lembranças passadas e erigir a cena.
Haja vista de que se tratava de uma aula (e não só de um espetáculo), a metodologia pela qual as explanações se presentificavam levava em consideração dois quesitos: a evolução cronológica do desenvolvimento do espetáculo e a exibição, no telão, de como eram as cenas antes de serem mudadas. As constantes alterações pontuam claramente a autorialidade da obra e como os acontecimentos pessoais das duas atrizes influenciam seus estados cenicamente, dando à peça novos rumos continuamente.
Há uma sólida e longa ponte entre a filicida Medeia e as cândidas madonnas de Rafael. Ao longo de toda a ponte em ambos os lados dela estão as rosas de Zula. A imagem desmistificada da mãe, apresentada pelo espetáculo, bebe em fontes desses dois extremos. É interessante observar como a presença da ausência da mãe (des)estrutura todo o núcleo familiar. A maternidade ainda atua como base que sustenta a vida doméstica. Mas o que as sustenta? São somente os filhos e o marido responsáveis por tornar uma mulher plenamente realizada?
A saída de casa é, na verdade, uma busca interior da individualidade ofuscada. Tal atitude é um corte doloroso (para ambos os lados) nas cordas que manipulam as bonequinhas, chamadas de mulheres, um real abandono da limitadora Casa de Boneca. É, com efeito, um ato abrupto e tão indagável quanto a moral burguesa que ainda recai, sufocantemente, sobre a mulher. Por um acaso, isto também não é questionável?