Por Soraya Belusi
Referências ao real, deslocamentos no conceito tradicional de dramaturgia, o enfoque no trabalho do ator e a relação com a cena e com a linguagem são algumas das questões que pareceram se ressaltar nos trabalhos do primeiro dia de apresentações da edição deste ano do Festival de Cenas Curtas. Como uma espécie de microcosmo do que acontece na cena contemporânea, cada um dos esquetes, à sua maneira e medida, propõe provocações e/ou aprofundamentos acerca de um ou mais elementos pertinentes à arte teatral.
O Núcleo de Pesquisa sobre a Arte do Ator entre Oriente e Ocidente, da Ufop, sob a direção de Ricardo Gomes, apresentou “O Fim Está no Começo e No Entanto Continua-se”. Ancorada em trechos da dramaturgia de Beckett em “Fim de Partida”, a cena propõe-se a (re)construir essa sensação de vazio e de resiliência que marca o texto do escritor irlandês. Estão lá Clov e Hamm, em seu jogo cíclico de violência e desumanização, imóveis (mesmo quando ainda podem andar) em meio a um mundo de destroços e que parece anunciar a iminência do fim. O recurso da luminária pendente que oscila de um lado para o outro do palco e a trilha insistente e contínua que pontuam o trabalho reforçam essa percepção.
A proposta parece, sem com isso colocar em detrimento os outros elementos de composição da cena, proporcionar aos atores uma experiência de criação para dialogar com uma dramaturgia que, embora não seja recente, ainda lança muitos desafios a uma tradição de atuação conectada ao realismo/naturalismo. É na palavra, na situação, na relação com o tempo e com o espaço que reside o absurdo do texto de Beckett. A teatralidade já está instaurada e, aos atores, como parte dessa linguagem, coube construir esses corpos/vozes que estão na linha tênue entre o cotidiano e o fantástico, o deformado e o verossímel, o risível e o grotesco.
Ainda que também se apresente como um exercício que reflete sobre o ator e seu lugar na cena, é na construção da dramaturgia, e sua relação no espaço, que reside as questões mais significativas de “Fractal”, trabalho da Ou Cia., de Curitiba. Referindo-se ao conceito-objeto geométrico composto de várias partes que quando divididas se remetem à original, a cena estrutura-se como um jogo de linguagem, em que partes de um todo vão sendo deslocadas e reinseridas em um novo contexto, estabelecendo novas possibilidades de sentido e articulação.
Como se escrevesse no palco, não por acaso uma página em branco, é a palavra, novamente ela, que estabelece a teatralidade. Os atores parecem apenas emprestar seus corpos, frios e vazios de psicologismo e intenção, para que a linguagem estabeleça as relações entre eles, os conflitos, os fluxos de sentido. Não se constituem como personagens, apenas como vozes que se deslocam de lugar, compondo, a cada transição, um novo quadro. Essa instabilidade da linguagem é reforçada pela presença permanente da luz e de um chiado.
É quando busca o entendimento da “fábula”, em certo momento da cena, ou a identificação da plateia com um tom mais caricatural nos atores, por exemplo, que o jogo teatral parece perder um pouco sua força, não conseguindo alcançar uma visão cômico-crítica desses elementos que a cena parece, a todo tempo, recusar.
“Fractal” tem como uma de suas interessantes proposições a busca por desestabilizar a linguagem – e, com isso, consequentemente as noções de drama, personagem, conflito -, mas abre mão da presença para poder estabelecer uma relação mais viva e de convívio com o espectador, correndo o risco de tornar-se um exercício excessivamente asséptico e contemplativo, desvinculando-se da teatralidade que propõe com a tríade um homem-uma mulher-agora.
“Caretas”, da Primeira Campainha, estrutura-se inicialmente como uma paródia-deboche que, aos poucos, vai transformando-se em problematização sobre liberdade, desejo, escolha, influência midiática, noções de moralidade e estética, sobre a noção mesma de sujeito em permanente crise. A dramaturgia apoia-se na afirmação e contradição dos discursos, na defesa e dissolução de certezas (sobre certo, errado, bom ou mau gosto, por exemplo), fazendo com que esse movimento gere alta comicidade. A dualidade é reforçada pela presença das duas atrizes, com seus corpos vestidos com referências metade passado-presente, que transitam entre se colocar no papel de quem é visto (com as apresentações das dancinhas coreografadas) e de quem vê (“somos espectadoras”, diz uma delas enquanto esparrama-se pelo sofá).
“Derrame”, do coletivo This Is Not – que traz criadores de vários grupos de Belo Horizonte – parece levar ao extremo o exercício de romper com a convenção, com a construção lógica de sentido, com uma dramaturgia linear. É entre representar e vivenciar, entre a artificialidade e o real, entre a brincadeira e o objeto artístico, que a cena se situa, provocando permanentemente o espectador, em um jogo entre prender-se pela racionalidade da fruição ou permitir-se entregar-se à experiência sensorial compartilhada dos corpos que se entregam à água, ao chão, aos caos, à orgia de mergulhar de cabeça no nonsense, numa encenação de caráter performativo. Numa leitura subjetiva, é como se o Cine Horto tivesse se transformado por uma noite na praia da Estação, ou do escorregador do Mangabeiras, em que toda a repressão sobre os padrões sociais (e no caso da cena os teatrais) pode ser rompida coletivamente.
De maneira oposta ao coletivo anterior, o Grupo Espanca! voltou a se apresentar no evento nove anos após sua primeira participação com “Por Elise”, apropriando-se do formato tradicional da farsa para estabelecer uma crítica-reflexão social em “Onde Está o Amarildo?”. Em seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis ressalta que a farsa é o gênero que carrega em si um caráter subversivo “contra os poderes morais ou políticos, os tabus sexuais, o racionalismo e as regras da tragédia (…), sob a máscara e a bufonaria e a licença poética”.
A cena tem como detonador a história de Amarildo, cidadão que está desaparecido no Rio de Janeiro e que tornou-se símbolo dos abusos de poder e do descaso tanto da Polícia quanto do Estado – embora ele não seja diretamente citado em nenhum momento. A farsa, aqui ligada à realidade social e ao cotidiano contemporâneo no país, é forma, no que tange ao gênero dramatúrgico, mas também é conteúdo. O pedestal da burocracia já é logo estabelecido pela composição espacial formada de gavetas de arquivo, na qual um homem comum oprimido pelo foco da luz tenta estabelecer um diálogo com outro, de terno e gravata, que insiste em se portar como representante do poder.
Com referências que nos levam à escrita kafkaniana, o cidadão, em vez de protegido, é engolido pelo sistema que deveria lhe representar. A polícia, símbolo da manutenção dessa dita ordem, é representada na farsa do Espanca pela máscara do palhaço, o Sempre Eu, com bombas de papel e cassetete de borracha, simbolizando esse misto de empatia e medo que há entre cidadão e policial. A linguagem poética de “Por Elise” é aqui substituída pela crueldade do humor, a epifania do cotidiano pela violência da realidade, a metáfora da linguagem pela contundência e clareza do discurso.