por Luciana Romagnolli ::
Entrevista com André Felipe, dramaturgo e diretor catarinense que apresente no FITBH o projeto “À Distância” – “Lado A” e “Lado B”, e ministra oficina de dramaturgia a convite do Janela de Dramaturgia.
O projeto À Distância foi gestado pela internet. Em que cidades vocês estavam e qual era a dinâmica da interação para a criação conjunta?
O projeto surgiu em um momento de afastamento do grupo em 2011, de uma necessidade de continuar trabalhando junto, cada integrante estava desenvolvendo projetos próprios em diferentes cidades – eu e uma das atrizes em Buenos Aires (Argentina), um ator em Lyon (França) e duas atrizes em Florianópolis. A ideia a princípio não era necessariamente criar um espetáculo, mas seguir se vendo, discutindo teatro juntos, desenvolvendo uma pesquisa comum. Marcávamos conferências por Skype em nossas casas, fazíamos projeções para futuros espetáculos, tomávamos café juntos… E nesses encontros semanais começamos a vislumbrar a possibilidade de construir um espetáculo nestes moldes, esta era a maneira de fazer teatro juntos nesse momento. Este primeiro ano serviu então como um período de pesquisa e experimentação, tomamos como ponto de partida temático a biografia dos nossos avós e a Era de Ouro da Rádio no Brasil. Aos poucos, fomos descobrindo como funcionava essa dinâmica, definíamos pautas de trabalho por e-mail, a primeira hora de ensaio fazíamos separados, compartilhávamos os resultados postando vídeos no youtube e nos encontrávamos por Skype. As próprias funções criativas foram se definindo aos poucos neste processo – eu a princípio também estava em cena. Com o tempo foi surgindo a necessidade de estruturar os materiais que fomos levantando. A dramaturgia, portanto, se estruturou a partir destes materiais que fomos colecionando em arquivos jpg, wmv, doc, mp3…. Colocar as cenas em prática foi o mais complicado, esta estrutura demandava um tempo e uma dinâmica muito particular (coordenar os fusos, contar com o humor das conexões, os ruídos de comunicação), cada detalhe era um grande avanço. E, em paralelo, começamos a esbarrar nas dificuldades técnicas deste projeto que começava a se desenhar, entendíamos muito pouco de tecnologia, não tínhamos equipamento técnico necessário, nos faltava espaço, boa conexão. Terminamos este primeiro ano de pesquisa muito esgotados, mas felizes porque tínhamos nas mãos algo que nos interessava seguir aprimorando. Por falta de recursos, congelamos o projeto por um tempo e no fim de 2012 fomos contemplados pelo prêmio Myriam Muniz para montagem. Iniciamos esta nova etapa do processo em 2013 com todos os integrantes de volta a Florianópolis, com um ator convidado (Marco Antonio Oliveira) e uma equipe grande de criação e assistência.
De que maneiras vocês abordam o tema distância – espacial, temporal, afetiva…?
Como disse, a estrutura da obra se configurou muito naturalmente a partir de uma necessidade, dessa condição de distância espacial, geográfica, dos integrantes do grupo. A partir do momento que definimos esta estrutura de duas peças em espaços diferentes conectadas por um sistema de videoconferência, achamos que tematicamente seria interessante buscar outras relações com a distância. Queríamos que questões como a saudade, a ausência, a relação com as novas tecnologias, a dificuldade de comunicação, emergissem da própria forma da obra. Neste sentido, buscamos nas biografias dos nossos avós a chave para se relacionar de outra maneira com a distância, em uma relação temporal e afetiva. Os atores se colocaram no lugar dos seus avós quando tinham as suas idades – remexeram álbuns de foto de família, entrevistaram parentes, vestiram roupas antigas… Dessa relação entre tecnologia e histórias afetivas surgiu um choque interessante.
Por outro lado, existe ainda uma distância de posicionamento e pontos de vista em relação a essa história que é contada em duas versões.
Também em um sentido mais formal, trabalhamos com procedimentos de narração e distanciamento na construção das cenas. Em cena, os atores se dividem entre interpretar seus avós e narrar suas histórias.
Como a dramaturgia lida com a questão geracional, num contexto como o nosso de rápidas mudanças tecnológicas e do elogio à juventude?
Neste processo de aproximações e distanciamentos entre a juventude dos nossos avos e a nossa, uma constatação nos marcou muito na construção do espetáculo: de modo generalizado, na década de cinquenta (parte da peça se passa em 1958) o passado era visto com maus olhos (o passado de guerra, escassez, atraso), enquanto o futuro era iluminado, brilhante e prateado. Hoje essa relação parece se inverter. Nossa relação com o passado é comumente uma relação de nostalgia e glamurização (o antigo, o retrô, o vintage) e se pensamos no futuro o primeiro que nos vem à mente é um mundo apocalíptico de mudanças climáticas, escassez de água… Em À distância buscamos colocar em contraste estas diferenças e aproximações entre os tempos e as gerações.
Como os Lado A e Lado B se relacionam? Há uma lógica de causa-consequência ou linear entre eles? E como a tecnologia os interliga?
Lado A e Lado B contam duas versões de uma mesma história sobre uma rádio de transmissão clandestina na década de cinquenta em Florianópolis que anunciava transmitir uma estação do futuro. A história é contada pelos netos dos integrantes desta rádio. Há uma discordância entre os dois lados sobre o desfecho desta história, cada um busca defender sua narrativa, expor seu ponto de vista. As duas peças acontecem de forma simultânea e sincronizada. Apenas as partes em que os netos encenam seus avós nesta rádio são conectadas.
Por que retratar uma questão pelo ponto de vista documental (suposto real) e ficcional ao mesmo tempo? A que efeitos de sentido isso se presta?
Questões que discutem o real e o ficcional na cena fazem parte de uma pesquisa continuada da Dearaque Cia., aparecem desde o segundo espetáculo da companhia A ponto de partir (2007) dirigido por Ligia Ferreira, baseado em textos da poetisa Ana Cristina César. Antes de tudo, sempre buscamos aproximar as questões que tratamos nos espetáculos aos nossos corpos e nossas biografias.
Mais especificamente em À distância, a questão emergiu com força na relação com as novas mídias e tecnologias, que sobrepõem camadas de realidade e deslocam nossas noções de tempo x espaço, presença x ausência e realidade x virtualidade/ficção. Materiais pessoais dos atores foram levados à sala de ensaio, deslocados a novos contextos e costurados pela dramaturgia em uma ficção travestida de realidade. O formato documental para contar uma ficção nos serviu para criar mais uma camada de sentido sobre as peças.
Há diferenças estéticas, de registro de atuação ou visuais mais marcantes entre os espetáculos?
Lado A tem como base a estrutura dos roteiros tradicionais de documentário – mesmo que de uma forma meio torta, tenta dar conta desta história da rádio de uma forma mais linear, organizada, baseado em fatos e registros, com recursos como letreiros, simulações de acontecimentos e entrevistas. Lado B tem uma estrutura mais deflagrada, os conflitos das histórias dos avós se misturam às dos netos e os textos ganham contornos mais poéticos e menos objetivos.
Recentemente, a MITsp trouxe um grupo Uruguaio que apresentava dois espetáculos (“Bem-Vindo a Casa”, de Roberto Suárez) germinados também: no primeiro, o público via uma representação estranhada, no segundo, o público voltava mas era conduzido a uma coxia (outra plateia) para ver de outra perspectiva as entrecenas dos atores quando saiam do palco da encenação original. Esse tipo de arquitetura e a de Lado A, Lado B seria um modo de pensar mais amplamente a experiência do espectador? Que concepção de espectador está pressuposta nela?
Sim. O formato do projeto surgiu meio por acaso e durante o processo fomos encontrando seus sentidos e possibilidades. Em À distância, os personagens tentam reconstruir um passado que não viveram através de registros e memórias. E os registros e as memórias são traiçoeiros, guardam aquilo que querem e aquilo que podem guardar. E mais do que tudo, nos interessou a questão do ponto de vista. Esta estrutura possibilita àquele espectador que vê os dois lados, uma visão de diferentes pontos de vista desta história. Qual versão é mais real? Qual é mais verossimilhante? Com qual lado eu fico?
[Neste sentido o formato documental, de pretensa fidelidade com a memória e a realidade, nos ajudou a jogar com estas questões]
O espectador também pode escolher a ordem que verá os espetáculos e são experiências completamente diferentes dependendo da ordem escolhida. Esta possibilidade de escolha também ajuda o espectador a se sentir parte da construção da dramaturgia do espetáculo e da sua experiência.
Acredito que, mais do que a relação com a tecnologia, estas questões do ponto de vista e da relação com o público abriram nossa percepção e seguirão se desenvolvendo como linguagem nos próximos projetos da companhia.
A cena teatral de Florianópolis ainda é tímida, com raros grupos que conseguem afirmar seu trabalho para fora das fronteiras do estado, embora haja um núcleo de pesquisa sobre teatro forte nas universidades. A que você atribui isso? E pensa que a cena está se fortalecendo nos últimos anos? Por quê?
Pergunta difícil. Florianópolis é uma cidade turística e universitária, por esses dois motivos distintos é vista comumente como um lugar de passagem, tendo dificuldade para se afirmar como cidade e pensar em políticas e projetos continuados. As políticas públicas culturais municipais e estaduais são bastante escassas e arbitrarias. Por tudo isso, por muito tempo aqueles que se formavam ou apenas se dedicavam a carreiras artísticas, usualmente terminavam migrando ao eixo Rio-SP (ou a outros grandes centros) ou mudando de ramo. Apesar de tudo, tenho a impressão de que nos últimos anos muitos artistas e coletivos independentes têm optado por ficar na cidade e encarar as possibilidades de criação artística nesta paisagem urbana. Uma das coisas que tem acontecido muito são projetos de colaboração. O projeto À distância, por exemplo, é fruto da parceria da Dearaque com uma série de artistas e coletivos jovens de diferentes linguagens que assinam o cenário, figurino, criação audiovisual, identidade visual, etc.
No seu texto para o Janela de dramaturgia, você valoriza a palavra em expansão. Como, na dramaturgia de À Distância, a palavra se insere?
A dramaturgia de À distância é uma dramaturgia rapsódica (aos moldes de Sarrazac), é um caleidoscópio de gêneros e materialidades de texto. A linguagem do espetáculo tem como base sua origem: a internet. Mistura desde referências literárias e teatrais clássicas (como As três irmãs de Tchekhov) a referências toscas de tutoriais de Youtube e outros virais da internet. Gosto muito da metáfora de um dramaturgo argentino, Mauricio Kartun, que diz que a sua dramaturgia é feita de rejeitos, sucatas, das palavras jogadas fora no cotidiano – eu diria que não existe nada mais descartável do que a palavra nos chats e nas redes sociais. Em À distância, talvez ainda um pouco timidamente, tentei me propor o desafio de me apropriar dessas palavras e imagens jogadas no mundo virtual e transformá-las em material criativo.