– Por Diogo Horta e Mailine Bahia Fernandes[1] –
Crítica a partir do espetáculo “A vida íntima de Babi – Uma pecinha filosófica”.
Fotos de Fábio Audi
Os criadores do espetáculo “A Vida Íntima de Babi – Uma Pecinha Filosófica” se propõem a aproximar o universo da filosofia das crianças e dos jovens, em espetáculo teatral que teve sua estreia no Centro Cultural do Banco do Brasil em Belo Horizonte. Muitas vezes distante do que se imagina de um teatro para crianças, o espetáculo possui dramaturgia e encenação complexas, podendo provocar certo estranhamento para o público em geral, seja crianças ou adultos.
A intenção do espetáculo é fugir das convenções do dito teatro infanto-juvenil ao apostar em uma história que pretende colocar o pensamento e a imaginação em primeiro plano ao invés de narrar uma história de forma linear. Assim, o espetáculo se arrisca em fazer algo que não subestime a criança, nem o adulto, na qual a compreensão requer um tempo e atenção maiores do que usualmente lhe é demandado.
O espetáculo começa com a personagem central chegando após a entrada do público, como que atrasada, e se colocando em algum lugar na plateia. Em sequência, duas atrizes se revezam nas primeiras falas do texto. Elas fazem uma apresentação de si mesmas e uma primeira menção à filosofia na leitura do livro “Introdução à Filosofia”. Dirigindo-se diretamente à plateia, com despojamento no tom da fala e um jogo pouco claro entre elas, não se estabelece um acordo imediato e de confiança entre atuantes e espectadores. Diante da ousadia de um início verborrágico, despojado e sem impacto visual, pudemos observar a dúvida de uma pequena espectadora que perguntou a mãe se o espetáculo não iria começar.
A dificuldade de aproximar o público do espetáculo começa aí, até pelo pedido de desculpa da atriz na primeira cena, que reiteradas vezes avisa que já está acabando de ler o livro “do início” (incluindo o título, ano de publicação, editora etc.), proposta que não nos pareceu levar a peça a algum lugar. O mesmo ocorre na cena falada em francês por um dos atores e que tem tradução feita em português por uma das atrizes. Além de não ser claro o motivo que leva o ator a dizer este texto específico em francês, também não contribui para o enredo ou para o jogo cênico que a tradução de certas palavras seja incoerente. Esta proposta talvez promova algum jogo para quem entende o francês, já que se brinca com o som e o significado das palavras de forma diferente. No entanto, há algo ali que possa fazer alguma conexão ou sentido para o restante do público? Ambas as propostas não parecem promover um estado ou elemento que enriqueça de fato a experiência teatral. As ações desencadeadas nestas cenas, dessa forma, limitam-se a uma superficialidade em termos de sentido e de acontecimento teatral.
O espetáculo vai se aproximar na sequência de Babi, personagem que está na plateia e é convocada à cena para “participar do espetáculo” na intenção apenas de responder a uma questão proposta pelo ator Thierry Tremouroux a todos os presentes no teatro. A questão enigmática e contraditória feita por Thierry é respondida por Babi com sagacidade e demonstração de compreensão de possibilidades além das habituais. Um problema, no entanto, na sequência disso, é que Babi permanece no palco naturalmente, sem que seja reincorporado o fato dela ser uma “criança do público”, uma menina que estava na plateia e subiu ao palco “apenas” para responder uma questão. Babi assume, portanto, o protagonismo do espetáculo de forma pouco clara.
Entendendo que Babi é a personagem central da narrativa a partir daí, o público acompanha a história desta garota que fugiu da escola onde estava estudando para procurar uma professora que havia sumido do colégio. A ausência desta professora na escola fez com que Babi tivesse um retorno negativo do professor substituto, que a desencorajou a escrever seu livro tão desejado. Na busca por esta professora, que incentivava as intenções de Babi, a garota encontra alguns personagens e célebres pensadores. São estes encontros que a fortalecem durante o caminho e a ajudam a realizar o sonho de escrever o livro no final do espetáculo. Há que se valorizar, portanto, o objetivo da personagem central – a escrita de um livro – que percorre um caminho de conquista e empoderamento em sua trajetória.
“Quero um dia escrever um livro para que me leiam”
Babi manifesta com fervor o desejo pelo conhecimento e pela escrita, conquistando seu objetivo e tendo a força necessária para realizar seu sonho. Um dos principais aspectos positivos do espetáculo é colocar uma garota negra como protagonista, uma vez que esse lugar é historicamente ocupado por brancos. O fato de ser uma mulher que busca e conquista seus objetivos também é relevante, uma vez que nos contos de fadas, por exemplo, observamos mulheres como protagonistas, mas quase sempre em situação de perigo e que precisam ser salvas por um homem no final da história. O espetáculo, portanto, traz duas referências e inspirações importantes para o teatro infanto-juvenil.
A intimidade de Babi, presente no título da montagem, diz respeito a seus próprios pensamentos, como esclarece um dos textos do programa da peça: “A decisão de montar A vida íntima de Babi nos faz refletir sobre a premência de construir um trabalho que colocasse os espectadores em contato com o que há de mais íntimo em cada um: o ato de pensar.” Assim, a dramaturgia e a encenação se fazem como pensamento da menina, com imagens absurdas, cenas entrecortadas, luzes e cores diferentes, imagens gravadas ao vivo e projetadas, entre outros recursos cênicos que ampliam com qualidade inegável a experiência estética no trabalho. No entanto, este elo que conduz a narrativa ou a falta dela (que seja apenas a clareza de que estamos todos na mente imaginativa de uma criança) não aparece de forma clara, deixando o público perdido em meio às cenas, cortes e referências a grandes pensadores.
Durante todo o espetáculo estas referências se pautam, muitas das vezes, em informações enciclopédicas, como datas de nascimento, origem e abordagem filosófica feitas com certo didatismo que deixam as possibilidades de reflexão vagas. Dessa forma, o público se conecta mais com a biografia do autor do que com o sentido de sua obra. A pergunta chave que leva Babi ao palco foi um mote interessante de ativar o ato de pensar, mas que se perdeu ali. O que, de fato, esses filósofos citados podem ajudar ao público a pensar o seu estar no mundo hoje?
Esses mesmos elementos também são utilizados no programa da peça, que contém uma proposta de mediação intitulada conheça um pouco mais de cada mariposa filosófica. O que num primeiro momento nos seduz não chega a instigar uma possível reflexão filosófica mais profunda. O material apresenta apenas informações básicas sobre os filósofos selecionados para o programa: Tales de Mileto, Simone de Beauvoir, Sartre, Angela Davis e Deleuze. Dessa forma, a intenção se fecha em si, se torna hermética, impossibilitando uma predisposição da criança e do jovem em criar conexões com sua vida. É aí, então, que o programa da peça perde o vigor.
A partir disso, perguntamos: qual relação o trabalho busca desenvolver com o público? Para qual faixa etária o espetáculo se direciona? Uma dramaturgia e uma encenação que flertam com o pós-dramático no teatro em uma proposta voltada para a infância seriam bem-vindas. No entanto, nos parece que o público se perde em meio a tantas referências e se distancia do espetáculo. Afinal, e as maçãs?
Uma visão de adulto
No todo do trabalho, nossa percepção é que a peça se comunica pouco com as crianças no decorrer do acontecimento cênico. Não há dúvidas de que esta percepção é aquela de adultos e que a apresentação em que fomos assistir estava vazia e com poucas crianças para que pudéssemos observar a atenção e a relação delas com o trabalho. No entanto, tendemos a confiar em nossa percepção de que os elementos escolhidos para o trabalho deixam a desejar no encontro com o espectador, apesar de demonstrarem pesquisa e inventividade ímpares.
Uma das surpresas encontradas em alguns trabalhos voltados para crianças hoje é a força que eles ganham quando também encontram eco nos pais e nos adultos em geral. Saímos da categoria do “Teatro infantil” e encontramos o conforto de uma categoria que poderíamos chamar de “Teatro para todas as idades”[2]. Isso ocorre de forma muito diversa nos trabalhos “A festa do pijama” e “Menino azul”, mas denota o quanto os pais também merecem atenção no dito teatro para crianças. Afinal, para além do público principal para o qual o espetáculo está dedicado, estamos falando de teatro, estamos falando de uma linguagem teatral. Quando o teatro consegue abarcar crianças e adultos, a proposta ganha muito, afinal um dos caminhos para pensar a formação de novos públicos para o teatro atualmente é estreitando a relação com os pais que procuram o teatro (novamente ou pela primeira vez) por conta dos filhos.
Em “A vida íntima de Babi” presenciamos um “Teatro para todas as idades”, não resta dúvida. No entanto, apesar de os pais reconhecerem alguns elementos a mais que as crianças, como os nomes dos filósofos e escritores mencionados (talvez) e algumas estruturas mais complexas em termos de encenação, como a gravação e projeção ao vivo, não chegam a se divertir e ter uma experiência prazerosa com a montagem. Não se trata de uma proposta fácil, o desafio de realizá-la é louvável e o risco de levá-la a cabo eminente. É uma pena que o resultado final fique aquém do que encontramos na defesa teórica sobre o trabalho nos textos do programa e no release. Todavia, o melhor do teatro é se refazer em cada nova apresentação, procurar e encontrar outros caminhos e continuar se arriscando para proporcionar ao espectador uma experiência valiosa. Esperamos que “A vida íntima de Babi” tenha longa trajetória e consiga se lapidar no essencial encontro com a plateia após esta primeira temporada em Belo Horizonte.
(*) Espetáculo visto em uma segunda-feira na temporada de estreia de 21 de julho a 07 de agosto de 2017 no Centro Cultural do Banco do Brasil – CCBB de Belo Horizonte.
Ficha Técnica
Direção: Renato Linhares
Colaboração Cênica: Mariana Lima
Consultoria Filosófica: Marcia Tiburi
Argumento: Manoela Sawitzki
Elenco: Juliana França, Marília Nunes, Raquel Rocha, Thiago Miyamoto e Thierry Tremouroux
Dramaturgia: Renato Linhares (a partir das improvisações do elenco)
Assistência de direção e videografismo: Lucas Canavarro
Trilha sonora original: Ricardo Dias Gomes
Cenografia: Camila Schmidt
Figurino: Antonio Rabadan
Design de Luz: Renato Machado
Operação de luz: Ricardo Vivian
Fotografia: Fabio Audi
Assessoria de Imprensa: A Dupla Informação
Design Gráfico: Evee Avila e Karin Palhano
Produção e Idealização: Quintal Produções
Direção Geral: Verônica Prates
Coordenação Artística: Valencia Losada
Coordenação de Planejamento: Maitê Medeiros
Assistente de Produção: Eduardo Henrique Alves
[1] Crítica convidada. Arte Educadora. Desenvolve ações educativas para diversas instituições culturais. Graduada em Artes Visuais pela UFMG.
[2] Este termo vem sendo percebido em discussões sobre o assunto que presenciamos nos últimos meses como uma escolha política para se afastar da ideia de um teatro infantil que tende, historicamente, a subestimar a criança e a tentar “facilitar” sua experiência artística.