Crítica da peça “Dois amores e um bicho” ::: Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica :::
Uma característica que me chama a atenção no texto do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott é a complexidade das imagens que sugere. Trata-se de uma peça que tem algo a dizer e esse algo está na articulação do que os personagens dizem, não no conteúdo literal das suas falas. É nesse ponto que o texto pode ser considerado difícil de encenar. A demanda de recursos técnicos e de habilidades para a criação de uma poética para a sua encenação não é a mesma demanda da encenação de um texto dramático comum. A estrutura da dramaturgia proporciona um acúmulo de camadas de narrativas e de pontos de vista que demandam um posicionamento por parte da criação do espetáculo. Uma espécie de posicionamento poético – uma ideia que mereceria um aprofundamento que não cabe neste texto, mas que podemos guardar para outra ocasião.
A encenação de Daniel Olivetto proporciona diversas formas de distração ao longo do espetáculo: a música constante – em tantos momentos mais audível que a voz dos atores, especialmente no caso de Jô Fornari -, a movimentação inquieta, os comentários feitos pelos gestos e expressões nos rostos dos atores a cada fala. O excesso de apelos à visão e à audição atravancam um pouco o apelo ao entendimento intelectual, à escuta profunda dos questionamentos da peça, que não são poucos.
De modo geral, o tratamento dado às questões assume um tom propositadamente frívolo, que talvez provoque um embaçamento da seriedade dos temas abordados. É possível apontar como exemplo dessa abordagem o conflito da mãe (interpretada por Sandra Knoll) para com o pai (Marcelo F. de Souza), que é posto em cena como uma mera briga de casal. No entanto, acredito que há ali uma confrontação de princípios: a partir de determinado momento, a mulher passa a ver no marido uma imagem que estava submersa, escondida pelos afazeres da vida cotidiana e pela responsabilidade de criar uma filha. A passagem da filha para a vida adulta provoca uma abertura no olhar da mãe – e a virada na narrativa.
E me parece ser exatamente na elaboração da imagem do homem, do pai, que o texto apresenta sua maior complexidade e a encenação, o seu calcanhar de Aquiles. A montagem da Cia Experimentus apresenta um homem que se comporta como uma criança, enquanto o ponto nevrálgico da peça é que os atos deste homem são os atos de um homem, adulto, responsável: um pai de família, como dizem. Apresentar a figura do pai como um bobo, como um homem infantilizado e inconsequente, é uma forma de “resolver” o problema sem de fato enfrentá-lo. O apelo ao histrionismo e a tentativa de fazer humor reiteradas vezes ao longo da peça são formas de varrer o problema para debaixo do tapete.
A opção da direção, que faz com que o ator “defenda” o personagem, querendo que ele seja querido, engraçado, provocou um curto-circuito na minha percepção. Me pareceu que o discurso do personagem ficou colado com o discurso da peça, quando o discurso da peça, a meu ver, seria um comentário – e um comentário duro – sobre o discurso e o comportamento do personagem. Por exemplo, quando o pai chama o cachorro de “viado”, o ator o faz como se isso fosse uma piada. E o que o texto de Gustavo Ott me parece dizer é que isso não só não é uma piada, como é uma forma de violência. Isso mata. Mata por contaminação, como um mal que se espalha de tal modo que seus meandros são difíceis de detectar. Mas as consequências são bastante visíveis. E devastadoras, como Ott nos mostra com a exterminação dos animais do zoológico.
O que a montagem da Cia Experimentus me faz questionar, com relação à feitura de uma peça de teatro, é o quanto o pensamento sobre o que se diz, o pensamento sobre a ética dos conteúdos, precisa encontrar recursos técnicos coerentes com sua proposta. Não basta à encenação providenciar um emolduramento confortável, bonito e divertido para apresentar determinados personagens e situações. É preciso, no caso do enfrentamento de um material como o texto de Ott, encontrar uma poética específica para uma enunciação crítica, uma poética que comenta, que descola. Sob o risco de se afirmar o que se quer criticar.
Para concluir, vale apontar a ótima escolha do texto pelo grupo de Itajaí, tendo em vista a rara colaboração entre autores e grupos do Brasil com os países vizinhos da América Latina, e que conta com o mérito da tradução fluida e coloquial de Marialda Gonçalves Pereira.
(*) O texto integra as ações da DocumentaCena – Plataforma de Crítica na cobertura da Mostra Latino-Americana de Teatro do Grupo