— por Luciana Romagnolli —
Crítica a partir do espetáculo “O Que Você Tem a Ver com Isso?”, da ZAP 18 (BH).
Foto: Madana Mohana
Todo início de ação pressupõe uma indagação: como fazer? Como preencher uma falta? Como mudar uma situação? Como agir no mundo? Escrever uma crítica não é diferente. Talvez haja críticos que já saibam, ao sentarem-se em seus notebooks, exatamente o que dirão para preencher as linhas seguintes. Como haverá, quiçá, os dramaturgos e os diretores de teatro que nunca iniciam uma criação sem ter a obra toda preconcebida em mente. Ainda assim, a concretização guarda sempre um enigma que só o ato é capaz de desvendar. No teatro de pesquisa, a investigação não é outra coisa senão jogar-se, em alguma medida, ao desconhecido. Pois é esse o gesto que permite descobertas. Não repetir procedimentos. Encontrar novos meios para obter novos resultados.
Mas, como fazer? Essa pergunta não ocupa posição central nesse preâmbulo à toa. É com ela que a diretora Cida Falabella inicia o espetáculo “O Que Você Tem a Ver com Isso?”, apresentado pela Zap 18 na sexta-feira (15), dentro do Projeto Off Cena do Sesc Palladium. Como fazer teatro hoje, diante de um contexto político em que os direitos humanos e trabalhistas estão sob risco? Não seria mais urgente a manifestação, a greve, a assembleia, a participação nas câmaras de vereadores e de deputados, a ação nas portas de fábricas e multinacionais, nas ruas? Como fazer teatro quando a arte e a cultura estão ameaçadas em suas condições de existência e sofrem uma ofensiva de desqualificação? Como fazer esta crítica sem considerar a dimensão política concreta imediata? Como escrever uma crítica, afinal? É algo que se descobre fazendo. Teatro também. Se isso já vale para períodos democráticos, quanto mais em tempos de exceção.
O início do espetáculo da ZAP 18 coloca em cena essas indagações enfrentadas no processo criativo, por meio de um dispositivo contemporâneo: filmagens de celular feitas por Cida Falabella nos dias da ocupação da Funarte-MG, de maio a junho de 2016. A ocupação foi uma experiência intensiva de busca por formas de fazer política que contemplem as tantas vozes constituintes da sociedade, incluindo aquelas em luta pelo reconhecimento de seus direitos – a frente feminista, a LGBTTI e o movimento negro – e as mais marginalizadas, tais como as pessoas em situação de rua, permitindo a conciliação da esquerda em torno de pautas comuns e apoio mútuo. Verdadeiro laboratório político para artistas onde se vivenciou, no corpo a corpo, o que o filósofo francês Jacques Rancière aponta como bases estéticas da política: as “lutas para transpor a barreira entre linguagens e mundos, na reivindicação de acesso à linguagem comum e ao discurso na comunidade, provocando uma ruptura das leis naturais de gravitação dos corpos sociais”, como ele definiu em uma entrevista a Solange Guénoun e James H. Kavanagh (2000).
“O Que Você Tem a Ver com Isso?” precipita essa experiência de resistência em busca de um “comum” partilhável entre mais sujeitos sociais, e de encontrar modos para transformar uma realidade muitas vezes percebida como imutável. Ainda segundo Rancière, desta vez em entrevista à revista Cult de 30 de março de 2010, “a estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos”. Eis os desafio ao qual os mais de vinte artistas em cena e fora dela se lançam no espetáculo: encontrar uma forma poética e política de dar a ver e a entender a crise contemporânea e a necessidade de transformação social a partir de uma visão crítica do país.
É do próprio fazer teatral que parte a ZAP 18 para responder como fazer teatro hoje. Recorre ao passado, à memória de seus feitos, como grupo que desde 2002 ocupa uma casa na periferia de Belo Horizonte, no bairro Serrano, uma opção geopolítica determinante no tipo de partilha do sensível pretendida. Retoma cenas de espetáculos anteriores, apresentados sob o olhar do presente, com um distanciamento histórico preenchido pela perspectiva crítica. “O Que Você Tem a Ver com Isso?” faz-se, então, como obra de transição, impermanente, instantâneo de tempos instáveis, desejo de assimilar algo que talvez ainda comece a se desenhar. O grupo conta como encerrou o percurso do espetáculo “1961-2009”, que a cada ano alterava seus números finais, por já não ser possível explicar cenicamente a complexidade dos acontecimentos políticos recentes do país. O novo trabalho é admissão desse limite e, a partir dele, busca por reinvenção.
Há uma simplicidade em cena que recusa a lógica capitalista do produto, da produtividade. As diferenças de performance entre os atores atestam também essa outra configuração, na qual o desempenho não é valor excludente – oposta ao regime meritocrata, faz do palco um espaço comum para corpos distintos. A dramaturgia é fragmentada e dispersa, agrega cenas de uma ópera-rap sobre um homem cego cujas posses são furtadas na cidade (antecipando o próximo espetáculo do grupo, “O Homem Vazio na Selva da Cidade”) a discursos políticos diretos e à fábula absurda do prefeito cujos decretos são cada vez mais disparatados, unindo leis imaginárias (de hoje em diante, arroz vira feijão) a reais (a “cláusula 8” proibindo artistas da livre expressão política durante a Virada Cultural), numa aproximação alegórica pronta a reafirmar a máxima de que o realismo fantástico, na América Latina, é apenas realismo – o que nossa política teima em corroborar.
Da ópera-rap ao canto de “Brasil, Mostra sua Cara”, cuja letra escancara a “atualidade” dos anos 1980, e ao manifesto festivo que abre o espetáculo, em alusão a ações estético-políticas como o carnaval de rua e a Praia da Estação, a música entra como discurso político e poético que endereça uma crítica social e conquista adesão de um público amplo. O teatro da ZAP 18 rechaça elitismos. Coloca em cena os cidadãos e cidadãs que vivem “no andar de baixo”, marginalizados, aqueles que estão fora do “comum”, ao mesmo tempo que se constitui em linguagem acessível e forjada no didatismo para se comunicar com um grupo mais amplo de espectadores.
A construção dramatúrgica multifacetada abre-se à interpretação mais livre por parte do público, especialmente quanto às conexões possíveis entre as partes. Sem um sentido de totalidade, emergem desejos e desafios. A mim, sobressaiu a fala de uma atriz sobre a igualdade ser, na verdade, escravidão, por não dar espaço às liberdades individuais – à qual compreendi como uma crítica que opera por inversão: numa sociedade em que a liberdade se confunde com o liberalismo individualista do cada um por si, perde-se a noção de liberdade coletiva como aquela só possível perante a igualdade de oportunidades para indivíduos inevitavelmente diferentes. O convite à reflexão crítica por parte do espectador se concretiza.
A experiência proporcionada pelo espetáculo diz respeito, portanto, ao processo de subjetivação política, a dar a ver que cada sujeito é um agente político na sociedade – daí a interpelação do título. A dramaturgia aberta, irredutível a um entendimento linear, age sobre a percepção de que a igualdade dos sujeitos e a justiça social estão por ser conquistadas. Um apelo à crítica e à ação. A pensarmos juntos: como?
A pergunta do título ecoa sobre os sentidos possíveis de se atribuir à obra. O próprio ato de se questionar é o que move os sujeitos. A resposta provisória, mais que isso, a resposta-semente plantada pela ZAP 18 é: união. Pela copresença dos corpos no mesmo espaço, pela união das ideias e das forças, pela conciliação, pela refutação do niilismo e do ceticismo, pelo combate à inércia. Um coletivo que se une para se interrogar e buscar respostas, que se une para propor, criar, agir, construir. Assumir sua parcela de responsabilidade. Colocar o mundo em movimento. Encontrar novas formas de configurar a sociedade pela revisão do passado, pela reflexão crítica e pela potência coletiva de luta.