— por Julia Guimarães —
Crítica de “Daisy”, de Rodrigo García (Espanha).
O autor e diretor argentino Rodrigo García, radicado na Espanha há quase 30 anos, ocupa um espaço curioso entre os artistas identificados ao chamado teatro pós-dramático. Se, por um lado, assume radicalmente o corte com o drama e a exploração de elementos performativos em suas encenações, por outro, seus textos, embora surjam no palco com o mesmo status que outras camadas da linguagem teatral, cobram do público uma atenção redobrada. Pois cada palavra dita parece importar bastante ao sentido da obra. E há geralmente muitas palavras em suas peças.
É justamente essa contradição – entre uma dramaturgia carregada de detalhes que merecem ser guardados e sua sobreposição a tantos outros aspectos da cena – que muitas vezes contribui para criar uma fruição vertiginosa ao espectador de suas obras. Uma fruição na qual devemos ser capazes de lidar com uma linguagem calcada no excesso.
Pois em “Daisy”, seu espetáculo mais recente – que estreou na França em 2013 e, neste ano, fez sua primeira temporada em Madrid –, García parece radicalizar tanto a verborragia quanto a proliferação de outros elementos cênicos com os quais costuma trabalhar. Assim, os atores Juan Loriente e Gonzalo Cunill dividem o palco com baratas, caracóis, uma tartaruga, dois cachorrinhos de estimação e uma tela onde se projetam filmes, textos e imagens extraídas do palco. Há também ali uma moto e um quarteto que, em determinados momentos, interpreta obras de Beethoven.
Ao apostar na exploração excessiva, e aparentemente gratuita, dos elementos que colaboraram para construir sua identidade como artista, García também acentua uma das temáticas que em “Daisy” ganha centralidade: refletir sobre o empobrecimento dos sentidos no nosso cotidiano. E, ao fazê-lo, tenta jogar com o limite do banal também na linguagem de sua obra. Ou, nas palavras do autor, “Daisy (…) aspira a ocupar un podio en la carrera de la idiotez”.
Logo que o público chega ao teatro, depara-se com a reprodução, em tamanho superlativo, da cachorrinha Yorkshire que dá nome ao espetáculo. Exemplar da raça ultrapopular entre os mascotes de estimação, a cachorrinha remete à famosa escultura “Puppy”, de Jeff Koons, obra que dá boas-vindas ao visitante do Museu Guggeinheim, em Bilbao.
A referência irônica estabelecida logo de cara com o artista estadunidense – ícone da fusão pós-moderna entre economia e cultura – parece reforçar aspectos que retornam ao longo do espetáculo. Em especial, a maneira como a frivolidade atravessa hoje as mais diversas esferas do comportamento, sejam elas ações rotineiras ou a própria linguagem, passando por nossa relação com os bichos e pelo mercado da arte.
Para abordar o tema, o texto de García se inicia com uma reflexão sobre o ato de domesticar animais em diversos lugares do mundo, enquanto um dos atores conta ao público como logrou domesticar as baratas que frequentam sua casa, ensinando-lhes a preparar ovo frito e salada.
Através de uma narrativa mais cômica que os textos anteriores, a meio caminho entre o cinismo amoral e o nonsense, os atores-narradores travam monólogos longuíssimos, quase sempre sem ações. Os temas tratados parecem absolutamente aleatórios: abordam desde a humilhação pública que resulta do aventurar-se no esqui aquático até a relação ‘pós-freudiana’ entre os sonhos e o que as pessoas comem no jantar. Ou reclamações sobre como a capacidade de expressão do ser humano reduziu-se, no século XXI, a meia dúzia de “simbolitos de mierda” – em alusão aos populares ‘smiles’ presentes em celulares e computadores. Na sucessão dos monólogos, surge um embaralhamento sem muita distinção entre crítica, poesia, humor e banalidade, reforçado pela maneira ora apática, ora sarcástica, com que os atores lidam com o texto.
Em diversas ocasiões, a narrativa dialoga com a presença dos animais em cena, ampliados em vídeo e áudio. Escutamos, por exemplo, o ruído produzido pelo movimento das baratas que estão no palco, ao mesmo tempo em que podemos vê-las na enorme tela ao fundo. Em outras passagens, são as lesmas que rastejam pela superfície de um instrumento musical, enquanto atores falam sobre certa “viscosidade imunda” que nos protege do contato direto com o mundo real.
Além de provocar sensorialmente o espectador, a presença de tantos animais no espetáculo parece criar, com sua espontânea indiferença, um estranhamento sobre tudo o que é dito e construído em cena. Esse aspecto ajuda a radicalizar o caráter ambíguo da dramaturgia, cujo jogo provocativo com a superficialidade faz com que o espectador chegue a questionar a relevância mesma dos acontecimentos que se passam ali, diante dele.
Esses longos monólogos são intercalados por ações/imagens sem texto, pautadas pelo diálogo com a música, a dança e o vídeo. É o caso do momento em que os atores executam coreografias com os cachorrinhos de estimação a tiracolo, quando ocorrem projeções de vídeos bizarros que mostram maçonarias de baratas e atores vestidos de fantasmas, ou nas duas vezes em que o quarteto entra em cena e toca Beethoven, ao longo de mais ou menos meia hora.
Tais cenas, especialmente as musicais, são pensadas como um respiro para o espectador em meio a tanto excesso, uma espécie de pausa para digerir o turbilhão de estímulos, como já declarou o diretor em entrevistas. Curiosamente, no entanto, a mudança brusca de linguagem artística, também explorada em outros espetáculos, costuma gerar frustração e deixar o público irritado.
Foi o que aconteceu, por exemplo, nas apresentações de outro espetáculo de García, “Gólgota Picnic”, no FIT-BH de 2012. Naquela temporada, era comum ver o público deixando sucessivamente o teatro ao longo dos 50 minutos em que era executada em piano uma peça de Joseph Haydn. Em “Daisy”, contudo, a aposta pela mudança brusca surge com menor dilatação temporal e, na apresentação vista em Madrid, as evasões nas passagens de música foram pontuais.
Através de todos esses recursos, García cria e destrói imagens com a mesma facilidade com que passa de um assunto a outro em sua dramaturgia, ou de um animal a outro na encenação. Cria, assim, uma cadeia de livres associações que, ao final, sob aparente nulidade, contribui para desnaturalizar o automatismo presente em ações rotineiras e, consequentemente, extrair da vulgaridade um pouco de beleza.
E é nessa linha tênue entre provocação e esvaziamento que o polêmico criador constrói em “Daisy” um lugar paradoxal, responsável por expor, com originalidade e humor, padrões de comportamento e consumo camuflados por tantos outros excessos rotineiros.