– por Daniel Toledo –
“De planos emergindo, mas não planejada; movida por propósitos, mas sem finalidade”: se tais palavras compõem, aos olhos do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), um justo retrato da civilização que construímos juntos, visão semelhante parece ser compartilhada pelo diretor e dramaturgo Carlos Rocha quando consideramos sua mais recente criação, o espetáculo “O Urro”. Realizada em parceria com o músico Gil Amâncio (também codiretor da montagem) e o ator André Senna, a obra estreou em agosto de 2014, em Belo Horizonte.
Tendo a grande cidade como universo de experiência, observação e constante estranhamento, o espetáculo apresenta ao público a emergência de uma epidemia que leva habitantes de grandes metrópoles a emitirem urros cada vez mais intensos. Se no clássico “O Rinoceronte”, de Eugene Ionesco (1909-1994), a metamorfose significa a rendição violenta dos personagens a um sistema social de opressão e anulamento, o que se verifica, em “O Urro”, é o processo inverso: aqui, a sonora epidemia surge, em certo sentido, como uma espécie de recusa civilizatória e afirmação da animalidade humana.
Logo nas primeiras falas de Dilermando, único personagem em cena, já se percebe um discurso claramente crítico em relação à grande cidade e às condições de vida que nela se mostram possíveis. “Coisa curiosa de se notar era que nenhum deles parecia irritado com o que os oprimia – como se já considerassem o peso que carregavam, parte de si mesmo”, diz o personagem, em referência aos habitantes da fictícia Urbanus, metrópole onde parece ter chegado há pouco tempo. É sob o ponto de vista desse personagem, portanto, que acompanhamos o alastramento de uma inusitada epidemia entre os habitantes de Urbanus.
Habitante de um pequeno quarto de pensão, à qual vez ou outra se refere como “espelunca”, Dilermando escreve à maquina suas impressões sobre a recém-descoberta metrópole e os urros que, dela, começam a fazer parte. A partir de um gestual minuciosamente elaborado e executado, mais interessado na sucessão de imagens típicas e marcantes do que em algum tipo de progressão realista, o personagem narra ao público os sintomas de uma cidade – e uma sociedade – `a beira de um colapso.
Em cena, tais impressões são desdobradas em sucessivos letterings, peças de áudio previamente gravadas pelo mesmo ator e, principalmente, expressivas ilustrações que traduzem à linguagem dos quadrinhos a detalhada narrativa apresentada pelo personagem. Projetados em uma grande tela, letterings e ilustrações muitas vezes assumem o protagonismo da cena, conferindo ao personagem a função de reforçá-los ou comentá-los, sempre a uma certa distância e, recorrentemente, com certo humor, como se, em certo sentido, tanto ele quanto aquele quarto de pensão estivessem imunes à tal epidemia.
Essa característica narrativa do texto – e da montagem, como um todo – permite construir uma análise ao mesmo tempo sofisticada e poética da problemática urbana, destacando aspectos como a violência das relações interpessoais e institucionais (“cada um desses homens parecia carregar a mochila de um soldado quando vai para o front de guerra”) e a própria aceleração da vida (“possuídos pela incontida necessidade de andar sem parar”).
Por outro lado, a aparente separação entre a narrativa e os acontecimentos da cena por vezes dá impressão de que se trata de uma história já encerrada e plenamente conhecida pelo personagem, que não se vê em perigo e muito pouco se afeta pelos fatos narrados. Enquanto a cidade apresentada no telão e no texto do espetáculo parece estar em plena revolução, o quarto de pensão que vemos no palco permanece quase inalterado ao longo do espetáculo, tal qual os estados de ânimo do personagem, quase sempre imerso na escrita e na leitura de seus relatos.
Breves situações dramáticas são inseridas em cena a partir de telefonemas da mãe do personagem, que por duas vezes atravessa a encenação, criando um produtivo contraste entre os grandes acontecimentos da cidade e as pequenas preocupações domésticas e familiares que, alheias à grande narrativa, reivindicam sua importância. O desenvolvimento dessa dimensão íntima do personagem, no entanto, acaba perdendo destaque ao longo do espetáculo, progressivamente ofuscada pelas funções de narrar e comentar os últimos acontecimentos de Urbanus.
Espetáculo aberto a múltiplas leituras, “O Urro” é fruto de um projeto antigo de Carlos Rocha. A montagem, entretanto, estreou há pouco mais de um ano após as manifestações de junho de 2013, em meio a uma clara crise civilizatória que persiste até os dias atuais. Ainda que não esteja em sua raiz, o contexto presente certamente atualiza o sentido da obra, dentro da qual se defende, de modo poético e contundente, uma urgente necessidade de reorientação da atividade humana. “Diante a uma iminente catástrofe da raça, estamos de alguma forma apertando o imaginário botão genético interno… e dando início ao processo de reiniciar a espécie!”, sentencia Dilermando.
Mesmo que vislumbrada à certa distância pelo público, que, tal qual o personagem, assiste à revolução como se dela não fizesse parte, a experiência da fictícia Urbanus estabelece claros diálogos com o momento presente, reunindo em si reflexões construídas desde o surgimento das primeiras metrópoles por sociólogos como Georg Simmel (1858-1918) e Walter Benjamin (1892-1940), assim como pelo pioneiro Charles Baudelaire (1821-1867), não por acaso apontado pelo personagem central de “O Urro” como seu poeta predileto.