– por Elisa Belém –
Crítica a partir do espetáculo “A Projetista”, de Dudude (MG).
No solo “A Projetista”[1] , é dito que, para Marcel Proust, “o verdadeiro sonhador é aquele que vai verificar alguma coisa”. E que, para Henry Thoreau, “nossa visão não penetra as superfícies das coisas. Pensamos que é, aquilo que aparenta ser”. Dançar além da superfície das coisas, faz revelar o que não se vê. O braço é estendido para o alto, levado pela mão que gira um lápis. O pé desliza no chão, o corpo se move na cadeira pendendo sutilmente até apoiar a mão no chão e voltar a sentar para levantar-se. O lápis continua a desenhar o espaço e logo é posto sobre a mesa. O gesto deixa as mãos livres para desenharem por si, o espaço. A melodia gravada, vem do som de um piano. A performer volta a se sentar em sua escrivaninha. Já estamos no meio do espetáculo. As palavras dançam no espaço atravessado pelo sonho. Qual sonho temos a verificar? O que nos move?
A performer se coloca em cena atrás de uma mesa, na qual há uma pilha de papéis e livros. Fala para o público sobre os espetáculos que poderia fazer, a obra que poderia criar. São os espetáculos que o espectador poderia ver, os eventos dos quais poderia participar; projetos que não serão realizados. O palco é ocupado apenas pela escrivaninha e pela performer, como num pequeno escritório, no qual se escrevem projetos. O restante do palco, em toda sua extensão é iluminado em determinados momentos, nos quais passa a ser ocupado pela dança. Já estamos… no início do espetáculo.
Discute-se a difícil tarefa de adequar o desejo de criação à um modelo burocrático de administração e gestão financeira. No entanto, mais do que uma reflexão sobre a situação econômica e os modos de controle, é uma discussão sobre aquilo que não é estimulado: os meios de reconstrução criativa permanente do vivo; a força da reinvenção, do refazer. Se é próprio ao ser vivo, ao organismo vivo, criar as condições para manter-se vivo (conforme podemos inferir a partir, por exemplo, da ideia de autopoiese[2]), a força propulsora é a da reinvenção. O que se verifica é que lidamos com outras forças contrárias, que tolhem a singularidade do indivíduo, que o encaminham a um silenciamento e apagamento de seu próprio potencial criativo. Forças que estão nas normas, nas ações de violência incorporadas e amenizadas, que levam a uma sobrevida e não àquilo que alguns pensadores nomeiam como uma vida. Esta, conteria em si, a potência vinda da alegria.
O solo em questão denuncia que vivemos num estado de violência não declarada, que diariamente nos tira a possibilidade de plenitude. Poderia falar de um corpo-denúncia, de um corpo-ferida. Mas não é necessário, seriam termos esvaziados. O corpo em cena desta performer, e sua capacidade de atuação, mostra estados, atravessamentos, que geram, ao vivo, o belo e o horror, aquilo que, nessas duas dimensões, ultrapassa o representável. Quando Dudude dança, sua alma dança, seu coração dança, seus pulmões, fígado, rins, sexo, útero, pele, músculos, ossos e células…
Por que a projetista seria uma prisioneira da esperança, se a esperança é libertadora? O termo foi usado por Cornel West ao se referir a Martin Luther King Jr. A ideia expressa é de alguém cuja condição pressupõe a não desistência e a luta por liberdade. Talvez seja esta a condição de artista que trabalha pelo desenvolvimento de sua própria necessidade de criar e daquilo que pode ser considerado como uma vontade de arte (ONETO, 2007, p. 202).
Oneto (2007, p. 202) discorre sobre o “querer criar ou kunstwollen” e nos introduz à ideia de vontade de arte, referindo-se à arte como uma “política do impossível”, cuja causa seria “(…) manter-nos ativos em nosso enfrentamento do que parece não querer mudar, ou do que muda muito rapidamente para nós (o caos)”. Numa espécie de resistência e re-existência, conforme Oneto (2007, p. 208), a arte trabalharia em prol de aguçar a nossa sensibilidade para alguma coisa que já é a vida. Nesse sentido, a projetista pode ser considerada como uma prisioneira da esperança que, trabalhando por uma partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005), reinventa modos de existir e de criar refazendo políticas e encontros.
A performer desenha o contorno dos próprios pés numa folha de papel. Depois, suas mãos guiam o movimento pelo espaço. Daí, mãos e pés se revezam entre o chão e o ar; como se o corpo oscilasse entre o sustentar e o evanescer. Já estamos no fim do espetáculo. Mas o que é este espetáculo senão um projeto? As folhas de papel, aos poucos, cobrem o chão do palco lançadas pela performer. A imagem projetada de uma árvore corresponde a uma denúncia e a uma lembrança. O espetáculo termina com uma pausa.
[1] Solo de Dudude Herrmann, dirigido por Cristiane Paoli Quito.
[2] Autopoiese é um termo cunhado pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varella.
No âmbito das ciências biológicas, Maturana propôs investigar o que aconteceu ao originar a vida: “O que se origina, e que se mantém até agora, quando se originaram os seres vivos na Terra?” (MATURANA e VARELA, 2002, p. 10) Através de sua pesquisa, Maturana “desejava mostrar como o ser vivo surgia da dinâmica relacional de seus componentes de uma maneira alheia a toda referência à totalidade a que estes davam origem” (MATURANA e VARELA, p. 13-14).
Referências bibliográficas:
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. De máquinas e seres vivos – Autopoiese – a organização do
vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
ONETO, Paulo Domenech. A que e como resistimos: Deleuze e as artes. In: LINS, Daniel (org.).
Nietzsche/Deleuze: arte, resistência (Simpósio Internacional de Filosofia, 2004). Rio de Janeiro: Forense
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.