Por Marcos Coletta
Em “A análise dos espetáculos”, o francês Patrice Pavis diz que “o primeiro ‘trabalho’ do ator, que não é um trabalho, propriamente falando, é o de estar presente, o de situar-se aqui e agora para o público, como um ser vivo que se dá ‘diretamente’”. De fato, este se tornou um dos requisitos fundamentais da atuação contemporânea, porém, ouso discordar do autor quando afirma que isto “não é um trabalho, propriamente falando”. Pelo contrário, creio que atualmente o grande desafio e tarefa mais trabalhosa para qualquer ator é efetivar a presença mais simples e genuína, soterrada sob um século de técnicas, exercícios, artifícios, teorias e conceitos de todos os tipos. O fetiche cartesiano ocidental em sistematizar e criar métodos para toda e qualquer expressão da natureza fez da arte de ator mais uma disciplina analisada de forma racional. Um objeto de estudo decupado e fragmentado no intuito de compreender e apreender sua verdade. Pavis, um dos homens mais respeitados na arte de racionalizar a arte, ídolo acadêmico, referência para tantos trabalhos teóricos, assume com sensatez que “descrever essa presença é a coisa mais difícil que existe, pois os indícios escapam a qualquer apreensão objetiva”. E talvez por isso, ele não possa considerar a presença do ator como um trabalho “propriamente dito”, pois se depara com a impossibilidade da racionalização. Vemos aí um pequeno exemplo de como a operação mental e lógica não dá e nunca dará conta de apreender todas as manifestações da natureza. Tudo bem, é apenas um livro, uma proposta quase científica escrita por um acadêmico, europeu, que muito contribui para os estudos do teatro, mas que em suas 309 páginas escancara nossa incapacidade de teorizar a arte sem cair em reducionismo tecnocrata.
Saltemos da França para a Alemanha, e vamos ao encontro de outro teórico, Hans-Thies Lehmann que, em seu “Teatro pós-dramático”, sugere que não se pode considerar o ator apenas como uma presença passível de objetivação, mas sim na sua “qualidade de copresença, de desafio mútuo”. Assim, para Lehmann, os gestos, sons e signos produzidos pelo atuante não são algo que simplesmente vem dele para que seja recebido pelo espectador, e está mais próximo de “uma estrutura de choque cuja excitação não se prende a um objeto – de um espanto não com a história, não acerca de um fato, mas acerca do próprio espanto.” Este choque causado por esta “com-presença” ultrapassa a linha do tempo, é a cesura entre o passado e o porvir, escapa ao visgo da imagem, traça um risco sobre a representação dramática.
Façamos um salto ainda mais brusco da Europa para o Brasil, mais especificamente para Recife, para um ator recifense chamado Giordano Castro, integrante do Grupo Magiluth, que se apresentou entre os dias 14 e 17 de março de 2013 em Belo Horizonte e trouxe os espetáculos “Aquilo que meu olhar guardou pra você” e “1 Torto”, este último um monólogo de Giordano Castro sobre… Ele mesmo – presença borrada pelo jogo entre ficção e realidade. O Grupo Magiluth, composto de sete homens, tem em sua essência uma energia vigorosa e caótica, pautada pela coletividade e mediada pela autenticidade e humildade dos atores na relação sempre direta com o espectador. Em “1 Torto” acompanhamos Giordano Castro em 50 minutos de prolixidade, divagações, clichês, ironias, auto-exposição, franqueza e a concretização da mais simples e, por isso mesmo, mais complexa, presença. Esta presença que Pavis não pode teorizar. Esta espontaneidade buscada por tantas técnicas, trainnings, conceitos, mas que talvez esteja exatamente fora de toda tentativa de captura. A ânsia pela certeza das coisas parece não caber na arte, então, deixemos isto para as ciências.
Giordano não nos impressiona com uma virtuose corporal (chega a ser confuso), não nos captura com uma dicção cristalina ou desenho vocal preciso (muitas vezes nem entendemos o que é falado), não nos comove com uma dramaturgia sofisticada, não nos oferece uma bela cenografia, uma iluminação poética, nem sequer uma trilha sonora cinematográfica. Não há a noção tradicional de “tratamento estético e estilizado da vida”. Nada em “1 Torto” se encaixa nos parâmetros ideais (e racionais) de um bom espetáculo. E é neste exato lugar que questiona a legitimidade destes mesmos parâmetros e a ideia do “bom espetáculo”. Bom para quem? Para que motivo? O Torto, ator-personagem posto em cena e à prova, depõe contra as diretrizes da vida comedida, do bom senso, do espírito morno, do conhecimento seguro. O Torto é um tipo contemporâneo, pós-dramático, macunaímico, mas ainda assim romântico. Giordano chama para si e é, de fato, este Torto, que se utiliza de diversas táticas cênicas mais ou menos elaboradas para um único propósito: se afirmar. Porém, sua busca pela autoafirmação não significa a busca pela verdade, pela adequação, mas, pelo contrário, se constrói em um estado permanente de crise e fragilidade (cênica e ficcional). É neste lugar fraturado e instável, que sempre incomoda os estetas e os cartesianos, que Giordano congrega a plateia e mantém acesa a “centelha de vida”, metáfora usada (e perseguida) por Peter Brook, diretor que nunca estabeleceu nenhum método de interpretação nem sistematizou suas ideias sobre o teatro, e por isso falo em metáfora e não em conceito. “1 Torto” acontece, e só por isso justifica a experiência única que proporciona.
É realmente louvável o trabalho de Pavis e de tantos outros teóricos e acadêmicos do teatro que puseram a arte em outro patamar, abriram campo de conhecimento sério e respeitado, retirando-a do limbo místico e impalpável da pura inspiração. Mas, não esqueçamos que isto é apenas uma tática de sobrevivência em uma sociedade que valoriza o Método acima de tudo. O espectador do Torto não deve trata-lo como um ente em análise, objeto em estudo, mas “um amigo, um outro si, um heteros autos, um alter ego” (AGAMBEN). Em espetáculos como “1 Torto”, é preciso deixar um pouco de lado o Cogito, ignorar o “Questionário Pavis”, e apenas participar, estar. Como convida o ator, plagiando Zezé de Camargo: “preciso de você aqui”.
20 de março de 2013.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios.
BROOK, Peter. A Porta Aberta.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.
PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos.