por Camila Canassa* ::
O pensar. Este que determina a existência humana segundo Renè Descartes –“penso, logo existo” – torna-se o pior inimigo do filósofo francês no monólogo encenado pela Companhia Brasileira de Teatro e reapresentado em Curitiba nos dias 17 e 18 de julho. Falo da peça “Descartes com Lentes”, que parou novamente na capital paranaense durante mais uma edição da Mostra Novos Repertórios. A iniciativa desta vez foi promovida pelo Edital Cultura 2014, de incentivo à produção artística brasileira no período da Copa do Mundo de Futebol.
Em “Descartes com Lentes”, a desconstrução do pensar é pesar e poética ao mesmo tempo. E é mais. É humor. Muito em parte pelo experimentalismo de Paulo Leminski (1944-1989), é verdade. A peça da Companhia Brasileira traz para o teatro um capítulo integral de uma das obras mais vanguardistas do poeta curitibano, o “Catatau”, lançado em 1975. Nela, o autor joga com as palavras de forma a trazer para o leitor um fluxo de pensamento perturbador, contestador, mas, ainda assim, capaz de poesia e comicidade. Escolhas do diretor Márcio Abreu, assim como a representação da atriz Nadja Naira, reforçam ainda mais estas características da obra e destacam o racionalismo cartesiano como conflito central do enredo.
Na ludicidade de Leminski, supõe-se que Renè tenha visitado o Brasil selvagem e tropical do século XVII pegando carona na comitiva de Maurício de Nassau durante as invasões holandesas. As singularidades dos costumes indígenas e da exuberância da fauna e flora local tornam-se surreais para Descartes, inapreensíveis. Um impacto que bate de frente com suas certezas filosóficas, que amplifica suas dúvidas a um nível ainda não alcançado, que tira os métodos e as bases do seu pensamento e faz com que ele questione a sua própria existência: “já não creio no que penso, já duvido se existo, hesito”. Diante disto, vê-se em cena um filósofo em constante fuga de suas reflexões, duvidando do que vê como quem tem sujeira no vidro das lentes.
Percebe-se a representação imagética deste conflito logo no início da peça. A existência cambaleia no corpo de Nadja Naira quando ela, interpretando Descartes, declara as primeiras palavras do texto por três vezes seguidas: “Ego, Renatus Cartesius…”. A cada pronunciar do nome latino do filósofo, a atriz cai ao chão, ou melhor, tomba, trata-se de um verdadeiro tombo. Uma queda dentro de um círculo de giz, de braços abertos, formando imagem semelhante ao Homem Vitruviano desenhado por Leonardo da Vinci. Ao meu olhar, coloca-se ali a fragilidade dos argumentos científicos sobre a existência humana. Argumentos que se levantam e tombam em diferentes períodos da História. E não seria este – o conflito que a Companhia Brasileira de Teatro destacou em “Descartes com Lentes” – o grande conflito da própria humanidade: desvendar a sua existência?
Ao final do espetáculo, a resolução deste conflito chega ao público em outra forte imagem. O personagem se despe conforme seus pensamentos se emaranham e o atormentam. O despir-se, peça por peça de roupa, me chega como uma contínua entrega, como reconhecimento de que o ser não está apenas no que é racional, no que é capaz de ser explicado pela linguagem humana ou até classificado pelas convenções da civilização. A existência vai além. Também está no campo dos afetos e, por isso, não pode ser explicada apenas por meio do que é pensamento. A presença nua em cena, entre tantas percepções, foi para mim uma revelação de que a existência também é sentida na pele, é vivida. É surpresa e recomeço a cada confronto de alma e espírito, a cada “irrupção de novas realidades” – nas palavras do próprio Leminski.
Para entregar-se a este ponto, entretanto, o personagem Descartes trilha um caminho crescente de abandono dos códigos linguísticos durante a encenação. Neste caminho, a poética e o humor são muito bem explorados por Nadja Naira e Márcio Abreu. Falas como “o sol por dentro dos cachos, frutas explodem em fachos, entre penas de insetos e plumas” ganham a emoção de quem se encanta com o novo por meio da interpretação da atriz e parecem mesmo ser versos que acabaram de saltar de um poema, não obstante terem vindo da prosa.
Por outro lado, a maneira como Nadja interagiu com o público envolveu os presentes em uma agradável comicidade ao misturar palavras, sentidos e significados tendo espectadores como interlocutores. Um humor que teve como chave a fragilidade da comunicação e a banalidade da linguagem, ineficaz na expressão do que é mais relevante à humanidade. Neste ponto, a peça me remeteu ao Teatro do Absurdo do dramaturgo romeno Eugène Ionesco, tanto no aspecto cômico, quanto na crítica ao racionalismo científico.
Em relação à escolha do espaço onde se deu a encenação, havia um palco montado no Teatro Novelas Curitibanas na ocasião – possivelmente para receber as demais peças da Mostra Novos Repertórios que também estavam em cartaz. Em cima e ao redor deste palco, foram dispostas diversas cadeiras para a acomodação do público. A atriz representou no espaço fora do palco, abaixo, bem à frente das amplas janelas do teatro – que ficaram abertas durante todo o tempo, distraindo-nos com a movimentação, a luz e o som da rua. Infelizmente, muitas das movimentações ocorridas em nível baixo e vários dos preciosos olhares e interações com o público foram perdidos por isso. Não é possível saber a motivação desta escolha, se foi técnica ou dramatúrgica – como a intenção de vincular a peça ao mundo externo ao teatro (à vida lá fora). Há ainda a possibilidade de isto ter se dado por se tratar de um exercício cênico, como o próprio diretor enfatizou antes da encenação. Penso também na possibilidade de terem preferido o espaço à frente das janelas na intenção de aproveitar as paredes, que foram preenchidas com frases extraídas de “Catatau”, formando um caos visual a partir deste emaranhado de palavras. De qualquer forma, para o público, a escolha significou uma perda de apreensão do espetáculo.
No mais, acrescentado à força do pesar, da poética e do humor, há ainda um outro fator de extrema relevância em “Descartes com Lentes” ter se reapresentado em Curitiba em junho deste ano. Em tempos de Copa do Mundo, quando se levanta a bandeira frágil de um nacionalismo superficial, trazer à tona a força do tropicalismo literário da geração de 70 é capaz de distribuir lentes de aumento à nossa influenciável visão.
Data da apreciação: 18 de junho de 2014.
*Camila Canassa é jornalista, assessora de comunicação cultural e bacharelanda em Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná – UNESPAR/FAP.
Como é encantador ler uma crítica bem construída.