— por Soraya Belusi —
Crítica a partir do espetáculo “Maxilar Viril”, da Maldita Cia. de Investigação Teatral (MG).
A Maldita Cia. ocupa um lugar singular na cena belo-horizontina. Desde o início dos anos 2000, o grupo liderado por Amaury Borges e Lenine Martins não apenas se dedica à pesquisa do procedimento colaborativo no desenvolvimento de seus trabalhos, como também é responsável, em certa medida, pela “implantação” desta forma de criação em outros coletivos da cidade, a partir do Projeto Cena 3 x 4, realizado em parceria com o Galpão Cine Horto. E essa maneira de criar seus trabalhos diz muito sobre os próprios resultados alcançados pelo grupo em “Maxilar Viril”, seu mais recente trabalho, que integrou a Mostra Off Cena – Teatro e Realidades, no Sesc Palladium.
De maneira extremamente resumida, o processo colaborativo de criação prima pela horizontalidade das funções e da colaboração dos criadores, sendo todos os materiais propostos durante o processo experimentados, reinventados e igualmente relevantes. Essas formulações tendem a ser fragmentadas, instáveis e permeadas por múltiplas vozes, assumindo um caráter muitas vezes fragmentário. Não que isso seja procurado antes na sala de ensaio. É justamente o mergulho criativo sem um lugar ideal a ser atingido que resulta, em grande parte, nessas características da obra final. A polifonia é, nesses casos, uma consequência bem-vinda, não uma obrigação formal.
Em “Maxilar Viril” é evidente a utilização de múltiplas fontes dramatúrgicas para se pensar o mito da violência na sociedade contemporânea. Estão entrelaçados em cena materiais textuais oriundos da adaptação de um conto de Eduardo Galeano (“História do Lagarto que Tinha o Costume de Jantar suas Mulheres”), de documentos sobre a Comissão da Verdade e de um texto criado por Amaury Borges cuja personagem principal chamava-se América. A própria variedade de fontes para a criação em sala de ensaio demonstra uma das características da companhia de se apropriar de elementos literários, documentais e dramáticos para tecê-los em diálogo com a forma da narrativa épico-dramática.
Esta faceta da investigação teatral da Maldita Cia., da fusão de fontes dramatúrgicas e da forma de atuação épico-dramática, talvez seja a que alcança mais potência no espetáculo. Lenine Martins, Elba Rocha e Amaury Borges demonstram grande desenvoltura no jogo de narrar-representar-comentar a ação, tarefa altamente árdua, ainda mais diante da complexidade do material com que lidam. Em contraponto, a origem documental dos nomes e fatos narrados da Comissão da Verdade ficam aquém do que parece ser o objetivo do grupo, tornando essa relação entre o mito de América e os “fatos reais” ainda presente apenas na superfície.
Voz também preponderante na montagem, a trilha sonora assume papel narrativo e distanciado, tendo a forma do concerto, uma radionovela latina, como possibilidade de contar a história de América, seu filho e suas mulheres devoradas. Cabe ao coro/radio/músicos comentar as mazelas da América continental, com seus clichês estéticos e jingles publicitários, estimulando o espectador a relacionar a história dramático-mitológica que é narrada em cena. Aproximam o espectador e fornecem mais uma camada para que este permaneça sempre em trabalho de fruição, reflexão e crítica.
A marca mais exaltada dos trabalhos da companhia é a ocupação e a ressignificação do espaço, neste caso o edifício teatral, “esse espaço morto, que só ganha vida quando entramos nele”, me disse não exatamente com essas palavras a atriz Elba Rocha ao comentar o processo de criação do espetáculo. Em “Maxilar Viril”, isso se dá na divisão entre homens e mulheres ainda na fila, sendo eles guiados ao palco por uma imagem mitológica da morte, com sua carcaça animal, enquanto elas são levadas ao abandono do escuro da plateia, enquanto assistem à chegada deles no palco como personagens históricos de uma chacina ocorrida no interior do Peru e atribuída ao grupo guerrilheiro do Sendero Luminoso, nos anos 80. É o momento no espetáculo em que essa pesquisa do grupo se faz de fato presente, mas que logo em seguida é desfeita para o retorno à tradicional divisão palco-plateia. Mas para um grupo que traz a investigação no nome, o processo de experimentação não deve parar por aqui.