Texto motivado pela crítica de Clóvis Domingos a partir do trabalho Acima de Tudo do Teatro de Viés Ideológico (Deart/UFOP).
– por Ernesto Valença-
Foto de Gustavo Maia
É preciso começar com um agradecimento sincero pela crítica de Clóvis Domingos ao espetáculo Acima de tudo publicada no Horizonte da Cena (https://www.horizontedacena.com/e-possivel-organizar-poeticamente-o-pessimismo/). Só é possível entender essa crítica como um gesto de generosidade por parte de alguém que despendeu seu tempo para colocar em palavras sua presença como espectador. É um agradecimento impossível, pois somente quem faz teatro sabe o quanto é valoroso, inestimável, a contribuição que uma crítica, do nível da que recebemos, pode ter para um trabalho teatral.
O primeiro elemento notável é a capacidade de entendimento do teatro que estamos realizando. Ao vincular nossa peça Acima de tudo a palavras de Hannah Arendt e Walter Benjamin, penso que o espectador especializado entendeu tudo! Talvez, tenha até retirado mais do espetáculo do que aquilo que ele veicula, mas certamente captou o “espírito da peça”. De fato, Hannah Arendt e Walter Benjamin foram centrais em nossas pesquisas iniciais para o espetáculo, assim como outros grandes nomes que revelaram princípios do fascismo: Adorno, Horkheimer, Marcuse, Flusser. A Escola de Frankfurt é, certamente, minha grande referência quando crio espetáculos teatrais.
Em sua incrível crítica, Clóvis nos coloca a frase de Benjamin que em tudo resume nosso sentimento, sem que nós mesmos jamais tenhamos formulado dessa maneira: “é preciso organizar o pessimismo”. Nesse sentido, sua crítica completa o espetáculo. Admito, é uma peça pessimista. Disso sempre soubemos. Porém, mais que uma constatação, “é preciso organizar o pessimismo” é uma cobrança à equipe que realizou o trabalho teatral. É preciso organizar o pessimismo como uma arma, o pessimismo como forma de reação, como ímpeto para a luta e para a resistência. Não era outro o sentido do pessimismo para Benjamin, o reconhecimento do período terrível em que viveu (e em que vivemos), que isso significava uma derrota (significa uma derrota), e que esse reconhecimento é a chave, o elemento que serve de motor à reação organizada e à procura de saídas para a situação. Sua crítica nos cobra essa saída, esse apontar de caminhos possíveis à situação de derrota. Sua crítica nos diz: “não pode ser somente isso! Como artistas comprometidos com a encenação e com as questões levantadas por ela, vocês não podem oferecer ao seu público uma peça que não apresente saídas! Vocês não têm o direito a isso!”. Por isso, “é preciso organizar o pessimismo”, assim dizia Walter Benjamin e assim nos disse Clóvis Domingos.
Em grupo, lemos a crítica e reconhecemos nela algo de real, de verdadeiro. Reconhecemos, sobretudo, a necessidade de respostas, de apontar caminhos. E admitimos a dificuldade de fazer isso. É tentando organizar a dificuldade de respostas que escrevo este texto. Essa resposta deve começar de um outro lugar: acerca dos limites da representação.
Havia uma cena no texto original da peça que acabamos não levando para a encenação. Era a representação do assassinato de Marielle Franco, seguida de duas pessoas rasgando uma placa de rua com o nome dela. Um ato que, como se sabe, aconteceu na realidade, realizado por três figuras asquerosas: um deles, atual deputado estadual mais votado no Rio de Janeiro, Rodrigo Amorim; outro, Daniel Silveira, foi eleito deputado federal e, finalmente, Wilson Witzel, atual governador do Estado do Rio de Janeiro. Para nós, o ato de rasgar a placa realizado por eles era uma representação da morte de Marielle, um ato que comemorava seu assassinato através de uma representação, um simbolismo. Era um segundo assassinato, dessa vez realizado aos olhos públicos, para as câmeras. Assassinos orgulhosos de seu crime! Ao representarmos a representação deles, num jogo de representações espelhado, entendíamos que poderíamos virar o gesto contra seus realizadores, servindo como denúncia desse duplo ato covarde. Não por acaso, a cena chamava-se “A segunda morte”.
Acabamos optando por não representar essa cena. Ela foi motivo de intensa discussão no grupo, inclusive nos movendo a estudar questões ligadas aos limites da representação, à ética da representação. Esse momento de debates internos gerou outra cena que, esta sim, foi a público: um monólogo escrito e pronunciado por um dos atores, Bruno Marini, acerca da ética da representação.
Dos textos que foram motivo de debate entre nós, entre os quais Prácticas de lo real en la escena contemporánea, de José Sanchez e O Holocausto nas artes: os limites da representação, de Reuven Faingold, o que mais nos chamou a atenção foi uma discussão sobre os limites éticos da representação em relação ao holocausto dos judeus nos campos de concentração nazista. Obviamente, não por acaso, já que nosso tema era justamente o fascismo. A questão colocada nesses textos era a de que existiriam limites de representação que transitavam entre éticos e de capacidade representativa propriamente dita. Seria possível representar o nível de desumanidade e terror que aconteceu no holocausto? Algo desse terror vivido pelos judeus e outras vítimas do holocausto sempre escaparia à representação. O fascismo é irrepresentável, o limite da representação é o fascismo. Então, ao representar o holocausto com essa defasagem em relação ao terror que de fato se realizou, a representação não estaria colaborando para tornar o holocausto mais palatável, mais aceitável, como se ele pudesse ser absorvido, incorporado pela humanidade? Não haveria, portanto, um limite ético que não pode ser cruzado (no caso dos textos estudados, em relação ao holocausto, mas que pode ser expandido a qualquer massacre do mesmo nível: em relação aos índios na conquista da américa, aos negros na escravidão, aos presos políticos do regime militar brasileiro, etc)?
Por outro lado, como manter a memória do holocausto, como “lembrar para que não se repita”, abrindo mão de um instrumento tão poderoso como a representação? (Sem entrar aqui numa discussão acerca da própria pesquisa, interpretação e escrita da história serem, em algum nível, igualmente representação).
Em nossos debates dentro do grupo decidimos não representar a morte de Marielle, em respeito à sua memória e a questionamentos sobre se seria ético representar sua morte, se seria possível representá-la de forma a que essa representação servisse como uma arma, como uma denúncia. Chegávamos a nos questionar inclusive: e se um dos assassinos (ou alguém que apoiasse o assassinato, nesse caso não há a menor diferença entre uns e outros) assistisse à representação? Ele sentiria vergonha ou prazer com essa representação? E se alguém da família da Marielle assistisse? Sentiria que fazia jus à sua memória ou que estaríamos nos aproveitando de uma onda “Marielle vive”?
Confesso que, particularmente, nunca concordei com essas colocações. Para ser sincero, nunca nem as compreendi. Para mim, nunca houve a menor dúvida de que a ética estava do nosso lado, nunca houve a menor dúvida de quem devia se envergonhar nesse caso! Penso que, se há uma parcela da ética da representação que diz respeito aos produtores/criadores da representação, há também, certamente, uma parcela da ética da representação que diz respeito aos espectadores. Há uma ética da recepção que não deve admitir a naturalização ou incorporação de atos evidentemente desumanos pelo simples fato de estarem sendo representados à sua frente.
Mesmo não concordando nem compreendendo, aceitei a decisão do grupo, em especial porque entendi que, de toda forma, o grupo havia atingido alguma espécie de limite da representação. Não exatamente um limite ético, mas um limite na capacidade de representar o fascismo, paralelo ao limite político próprio de regimes fascistas. No nosso caso atual, do fascismo contemporâneo impulsionado pelos celulares e redes sociais, esses limites ganham contornos próprios.
O fascismo nos coloca num beco sem saída, num paradoxo: eles matam Marielle Franco, nós nos aterrorizamos com esse assassinato e corremos para os nossos celulares e divulgamos nosso terror nas redes sociais. Eles percebem o nosso terror e reencenam, ou seja, representam, ou seja, simbolizam a morte da Marielle, rasgando uma placa com o nome dela em público e, o que é extremamente importante se não mais importante que tudo, para as câmeras, em direção às câmeras; ato para ser filmado, fotografado e distribuído pela internet. E nós, novamente aterrorizados agora por um ato de representação odioso e condenável, corremos às redes sociais e expomos o nosso terror. E eles, percebendo que nosso terror e nossa indignação impulsionam suas próprias publicações, aumentam a aposta, e disputam entre si quem seria capaz de fazer atos mais reprováveis, mais repugnantes, mais aterrorizantes, para serem motivo de distribuição indignada em nossas próprias redes. Ou seja, nós respondemos exatamente como eles querem que nós respondamos. Nós nos indignamos exatamente como eles querem que nos indignemos.
Sem dúvida, entre nós e eles existem muitas diferenças, mas há um termo que nos iguala: os celulares e as redes sociais. É verdade, nós vamos às ruas e nos manifestamos de corpo e alma, mas essas manifestações são dirigidas novamente aos celulares, mais aos celulares, mais às imagens, mais às fotografias do que à realidade. Nós reforçamos o meio através do qual o fascismo se prolifera: as redes sociais, os celulares, a tecnologia contemporânea.
Então, só há um modo de romper esse ciclo viciante e vicioso: quando nós deixarmos de nos aterrorizar, quando nós deixarmos de divulgar e popularizar esses atos desumanos e indignantes. De certo modo, só podemos vencê-los quando abrirmos mão de nossa própria humanidade; só podemos derrotá-los quando nos tornarmos eles mesmos. Obviamente, esta não pode ser uma saída; obviamente, esta não é a solução da contradição, não é a solução do paradoxo.
O que é o fascismo? Uma força destrutiva da nossa humanidade, movida exclusivamente pela pulsão de morte. Essa força destrutiva da humanidade se manifesta de maneiras diferentes ao longo da nossa história. Se ela já se manifestou na Alemanha nazista através de um Estado forte, ela se manifesta no nosso contemporâneo através do neoliberalismo e ganha as redes sociais com um discurso absolutamente apropriado a elas.
O desprezo pela vida humana que eles manifestam através de seus discursos representa a aniquilação material da humanidade quando se aceita e se deseja a morte física de seres humanos dispensáveis. Mas representa também a aniquilação da humanidade que há em nós mesmos, em nosso íntimo. E nada representa melhor a aniquilação do que há de humano em cada um de nós do que nossa perda da capacidade de representação. Marcuse dizia que era a própria tecnologia contemporânea que coloca em cheque a representação, que coloca em cheque a arte: “…a mobilização total de todos os meios de comunicação para a defesa da realidade estabelecida coordenou os meios de expressão até o ponto em que a comunicação de conteúdos transcendentes torna-se tecnicamente impossível” (MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. 2015, p.94).
É precisamente isso o que vivemos: não há meios corretos ou adequados à representação do fascismo, menos ainda à representação de uma saída ao fascismo, de uma superação do fascismo. Representar uma situação que transcenda nossa realidade é impossível! Representar a organização do pessimismo é o limite da representação de nossa época, nosso zeitgeist. Essa incapacidade de representar o transcendente não é algo a ser solucionado pelo teatro, mas por todas as forças humanas que resistem à pulsão de morte e à tendência à aniquilação.
O problema dos celulares de das redes sociais, dos Facebook’s e dos whatsapp’s, que foram os principais meios de divulgação e crescimento do fascismo no Brasil e que procuramos retratar em nossa encenação, não é que eles nos tornam mais e mais solitários. Solitários somos talvez desde que nos tornamos humanos, solidão talvez seja nossa própria condição de humanidade. Na verdade, a solidão humana sempre foi o elemento que fez com que pudéssemos transcender à realidade, oferecer artisticamente uma alternativa, criar para além das condições dadas, superar os limites que a realidade nos impõe.
Talvez o problema de nossa tecnologia celularizada seja que essa solidão original, essa verdadeira solidão, não seja mais possível. Os celulares industrializaram a solidão, reificaram a solidão, oferecem agora a solidão em pacotes vendidos como pulsos e créditos pré-pagos. É uma solidão de outro tipo: anexada, institucionalizada, que despotencializa a reação e a resistência. O problema é que essa solidão, potencializada por celulares e redes sociais, é o que deu contorno ao fascismo no nosso país. Reconhecer nossa solidão humana e humanitária pode ser um primeiro passo para atingirmos a capacidade de representação de uma saída, de representação de uma solução para o paradoxo existencial fascista em que nos encontramos.
De fato, penso que estamos diante uma questão muito próxima à de Brecht, quando ele se questionou sobre se ainda seria possível representar o mundo contemporâneo no teatro. Para ele, o problema da descrição do mundo era um problema social. O problema era, e é, que o limite da representação, que a impossibilidade de representar uma saída para nossa situação, corresponde à impossibilidade de uma saída para a própria sociedade brasileira nas atuais condições. Há um pacto social que foi quebrado; mais do que um pacto somente democrático, um pacto de convivência humana. Entre muitos, milhares de exemplos possíveis: quando alguém se pronuncia de maneira racista; ou defende publicamente atos de tortura, espera-se que essa pessoa seja presa, não que seja eleita presidente. É esse tipo de rompimento social que coloca em colapso nossas capacidades representativas.
Restabelecer esse pacto social é condição para se voltar a ter a capacidade de representação de algo que ainda não existe, que espera para existir, que aguarda o momento certo para vir à tona, capacidade de representação da transcendência. É um problema de toda a sociedade, não exclusivo do teatro. Mas precisamos continuar tentando representar essa situação irrepresentável. De fato, não há outra coisa a fazer senão organizar o pessimismo. É a única maneira de fazer surgir o que ainda não existe!
Ernesto Valença é professor de Pedagogia do Teatro da UFOP. Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG (2014), possui Mestrado pela mesma instituição (2010) e graduação em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo- ECA/USP (2002). Realiza pesquisa sobre as múltiplas dimensões do jogo no teatro, abordando elementos práticos e teóricos e levando em conta aspectos políticos, sociais, artísticos, técnicos e filosóficos da questão do jogo teatral dentro e fora do teatro. Atenção especial é dada às experiências de integração de aparelhagens audiovisuais, sonoras e tecnológicas à cena, entendidas como uma vertente de jogo com a tecnologia.